Alguns dos melhores shows nacionais da atualidade, uma lenda viva do rock mundial, uma programação bem feita e uma estrutura pé no chão, mas muito boa. Não é toda hora que se vê essas condicionantes tão bem equilibradas como no Festival Do Sol, que aconteceu no último fim de semana (dias 6 e 7 de novembro) em Natal, Rio Grande do Norte. Talvez quem questione a importância de se apoiar e de existir um evento como esses numa cidade, até há alguns anos, sem tradição musical, não entende o momento em que vive a música brasileira. O Do Sol reuniu mais de 5 mil pessoas em dois dias, com 30 bandas, entre novatos, bandas locais, vários convidados de fora e bandas relevantes no cenário nacional, além de duas atrações de fora do país.
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Assim mesmo, bastaria um show para o festival já ter todo sentido. Marky Ramone Blitzkrieg parecia ser daqueles shows que valeria a pena apenas por ter literalmente, em carne e osso, a presença de uma lenda viva do rock no palco. Um Ramone tocando não é qualquer coisa. Mas não era somente uma lenda no palco. Por mais que pareça que a aura ficou pra trás nas obras de arte, como nos ensinou Walter Benjamin, a sensação era exatamente oposta, havia uma aura no palco. E todo mundo presente percebia, sentia e vivia algo especial duarante aqueles cerca de noventa minutos. Antes de falar do show, porém, vale a pena contar toda a experiência antes dele começar.
O Festival Do Sol acontece nas últimas edições simultaneamente em duas casas de show quase ao lado uma da outra. A Do Sol, casa tradicional do rock local com uma programação de bandas locais e de fora durante todo ano e com capacidade para 400 pessoas, ou 500 se ninguém quiser respirar, e o Armazem, espaço para eventos e shows que é alugado durante o ano para todo tipo de festa e que comporta umas 2 mil pessoas. Durante o festival, os shows aconteciam em uma casa enquanto na outra a próxima banda passava o som. Funcionava muito bem, com o público se deslocando a cada show e circulando por uma área que ainda tinha bar e um espaço para vendas de CDs, camisetas e badulaques.
Não dá para escapar de algumas constatações ao voltar ao festival Do Sol depois de dois anos. Primeiro é notar como a cena potiguar evoluiu, não só profissionalmente, com shows frequentes e mídia especializada, mas essencialmente pela melhoria dos artistas locais. Se há alguns anos, havia apenas um ou outro destaque e as bandas se destacavam apenas pelo esforço, agora dá para separar algumas bandas pela qualidade. Nessa edição, mesmo com a falta de bandas como The Bonnies, Bugs e Automatics, o festival fez um apanhado bacana de bandas locais revelando um cenário muito mais promissor do que há alguns anos, bem provável que por conta do próprio Do Sol e outras ações na cidade. Bandas como Camarones Orquestra Guitarrística, cada vez melhor no palco e que no festival jogou em casa, na final do campeonato e meteu de cara dois gols, grande show; Calistoga e Venice Under Water, a boa surpesa desse ano, mandaram bem no festival e aproveitaram para mostrar que Natal vem consolidando sua cena.
Os destaques, porém, ficaram mesmo para quem apostava nos artistas de fora do estado. Muito mais porque a produção do festival fez um apanhado do que de melhor vem acontecendo pelo país. Claro que faltou muita gente, mas um festival com Autoramas, Móveis Coloniais de Acajú, Garage Fuzz, Superguidis, Claustrofobia, Black Drawing Chalks, Nevilton, Cabruêra, Orquestra Contemporânea de Olinda, não vai deixar de chamar atenção por estes nomes. São algumas das bandas que estão fazendo os melhores shows no momento no país.
E é uma satisfação ver nomes como o Autoramas no palco. A banda existe há 12 anos, circulando pelo mercado independente, sem aparecer na TV ou tocar nas rádios, assim mesmo faz um show para 500 pessoas ser muito especial, como se fossem 10, 20, 50 mil em sua frente. Não é apenas ultra profissional, é sempre bom, divertido e marcante. Com o repertório de pequenos clássicos, como “Você Sabe”, “Paciência” e “Mundo Moderno”, Gabriel Thomaz lidera a banda e o público, fazendo o tripé perfeito para um bom show: carisma, performance e, claro, o essencial, boas músicas. O público responde cantando tudo, promovendo alguns dos melhores momentos do festival, como em “Nada a Ver” e “A 300 km/h” e pedindo biz, prontamente atendido para um fechamento devastador com “Surfin´Bird” do The Trashmen.
Com um rigoroso cumprimento de horários, era muito raro uma banda ter atendidos os pedidos de biz. Além dos Autoramas poucas outras tiveram esse privilégio. Não por falta de boa vontade, mas o esquema de shows no horário e começando sempre um atrás do outro era um dos méritos do festival, especialmente no primeiro dia. Cada banda tinha meia hora de show, com exceção dos principais nomes de cada noite. Quem aproveitou muito bem sua meia hora de show foram os goianos da Black Drawing Chalks, que caminha a passos largos para se tornar uma das melhores bandas de rock do país. Se em disco a banda ainda é apenas boa, ao vivo vira um monstro que engole tudo. Rock, no talo, alto, duro, stone rock pra soltar os demônios. O público alucinado dança e canta quase tudo e o hit “My Favourite Way” fica por um tempo reverberando na cabeça.
De São Paulo outro destaque, a veterana Garage Fuzz, que com quase 20 anos de existência sabe como agradar com seu punk hardcore. No show, o grupo mostrou uma sequência de músicas de seus discos com a competência que o coloca como um dos principais do gênero no país. Algo parecido faz também paulista Claustrofobia, mas aqui na linha metal extremo, trash e death metal e hardcore. Ótimo show, provando porque o grupo tem se dado tão bem em turnês fora do Brasil.
Do Rio Grande do Sul, a Superguidis trazia músicas de seu mais recente disco, “Superguidis 3”, que ao vivo funcionam bem melhor, com mais peso e vibração. Para melhorar ainda mais, encerraram a apresentação com uma das melhores composições já feitas pelo grupo, retirada do primeiro disco, a sensacional “Malevosidade”. Os argentinos do The Tormentos tiveram a ingrata missão de tocar depois do Autoramas, mas aos poucos foram conquistando o público e fizeram um belo show, com sua surf music instrumental, calcada no que era feito nos anos 50.
Evidentem que nem tudo são flores. Bandas como a AK-47 chamou mais atenção pela atitude do vocalista de meter seringas no corpo e se melar de sangue durante o show do que pela música. Uma das apostas do festival que não funcionou tãobem foi a Vespas Mandarinas & Fábio Cascadura. Começando com a banda – que conta com excelentes músicos, incluindo o ex-Forgotten Boys Chuck Hipólito na frente – tocando músicas próprias e versões, contando depois com constribuição do baiano Fábio Cascadura. A sensação era que não foi como planejado e que a maioria das versões era dispensável, apesar de boas escolhas, como duas do repertório do Cascadura, e a passável “Rádio Blá” de Lobão. Valeu a pena, no entanto, ouvir ao vivo a boa música ” O Inimigo”.
Festival Do Sol além do rock
O festival separou na primeira noite um momento batizado como “Baile Barulhinho Bom”, referência à festa de mesmo nome que rola na cidade. Para esse momento, já com a casa lotada, selecionaram os sempre bons paraibanos do Cabruêra e os pernambucanos da Orquestra Contemporânea de Olinda, uma banda interessante, com bom repertório próprio e algumas covers nem sempre necessárias. Mesmo batida, funcionou a idéia de levar meninas do público para cima do palco para cantar e dançar a deliciosa “Brigiti”.
A banda peca pelo excesso de informação no palco, muitos músicos fazendo várias trocas de posições e uma arrumação que não contribui muito. Acaba ficando confuso demais. Ajustando uma coisa ali, prometem seguir a trilha de bandas pernambucanas que fazem música brasileira moderna com um pé nos ritmos regionais. Qualidade eles têm.
Para fechar a noite, a primeira do festival, ninguém menos que o Móveis Coloniais de Acajú. Se havia uma banda entre toda programação do festival que resume o que pode ser o caminho da música brasileira hoje são eles. Vivendo fora do eixo Rio-São Paulo, sem tocar em rádio, nem aparecer na TV, apesar de agora figurar na trilha da novela das sete global, a banda vem trilhando um caminho muito bem sucedido no mercado independente. Como já foi presenciado em outros festivais e shows pelo Brasil, em Natal não poderia ser diferente, e o Móveis fez daqueles shows entusiasmados em que o público se rende e se lança ao que a banda propõe, música pra dançar, divertir e cantar, de preferência alto.
Hit atrás de hit, “O Tempo”, “Copacabana”, “Cheia de Manha”, “Lista de Casamento”, entrecortados pela versão de “Glory Box”, do Portishead. Bacana também a bem pensada performance, que inclui a sempre presente roda no meio do público, e, no bizz, a linda execução de “Adeus” com confetes prateados e uma brincadeira de dividir o público para fazer com a voz partes do sopro. A banda já tem a exata a noção do poder que possui e, no palco, não se amedronta em soar popular, de fazer sucesso e de jogar para o público. Isso mantendo a qualidade na música, sua mescla de rock, ska, música brasileira, sons dos balcãs, sem precisar apelar. É um dos grandes shows no país hoje, pronto para virar banda de massa, mesmo que o mercado não queira, nem permita, mas para uma massa específica e crescente eles já existem.
Assim como a Móveis encerrou a primeira noite, Marky Ramone Blitzkrieg foi o responsável por encerrar a segunda e o próprio festival. A expectativa do público para ver esse show era notória, com gente se aglomerando em frente ao palco assim que a banda anterior terminou seu show. Muita gente nem quis ver o show no outro palco, já prevendo a panela de pressão que o espaço iria virar e procurou seu lugarzinho com antecedência. A espera iria ser grande. Nessa proposta de dois palcos do festival, enquanto uma banda tocava em um, outra banda passava o som no outro palco. Depois de um tempo de espera, quando a banda já deveria estar passando o som, os técnicos retiram a bateria e levam para o backstage. Situação estranha, incomum. Era Marky Ramone que pediu para afinar seu instrumento. Pelo que se soube depois, ele não se deu por satisfeito até passar e afinar a bateria, com direito a troca de peles, que durou cerca de uma hora. Questionado se precisava fazer aquilo tudo, já que era apenas um show, soltou: “não, não é apenas um show, quero fazer o melhor”.
O punk rock nunca foi conhecido por seu apuro técnico, mas e daí? Era uma lenda. A espera só aumentava a angústia. Gritos de “Hey Ho! Let´s Go!” ecoavam enquanto o espaço aos poucos era tomado e ampliava o clima de celebração. Bateria montada, acerto rapidíssimo do som, um aceno e em poucos minutos uma lenda entoava suas rápidas batidas enquanto o resto da banda tratava de dar dignidade a uma das mais consistentes e importantes carreiras do rock. Não era o Ramones, mas era como se fosse. Marky, do alto de seus 54 anos, fazia por merecer a alcunha de lenda, injetando punk-rock enérgetico e comandando a porrada, enquanto o vocalista do Misfits, Michale Graves, nos vocais, mandava muito bem na posição do ícone Joey Ramone. A banda tinha ainda Tukan (guitarra) e Niño (baixo), ambos da banda punk argentina Los Violadores.
Logo no início do show parecia que a panela de pressão ia explodir. O público fazia rodas de pogo, enquanto vários garotos subiam nos PAs para dar moshs e os stage dives chegavam até a área de segurança em frente ao palco. Um caos bonito de se ver, com duas mil pessoas dando um show a parte, entre garotos com a testosterona a flor da pele e adultos relembrando como começaram a ouvir rock e entraram naquele mundo. Produção desesperada, seguranças aflitos, mas tudo deu certo sem maiores problemas.
A sequência foi arrasadora, que entre tantas músicas incluiu “Rockaway Beach”, “Teenage Lobotomy”, “Psychoterapy”, “I Wanna Be Sedated”, “Pet Semetary”, “Sheena Is a Punk Rocker”, e “The KKK Took My Baby Away”, sucessos dos últimos anos da banda como “Poison Heart”. Teve direito ainda a versões já tarimbadas feitas pelo grupo como “Do You Wanna Dance?”, gravada no terceiro disco, “What a Wonderful World”, sucesso com Louis Armstrong, e uma versão de “R.A.M.O.N.E.S.” do Motorhead. Simplesmente 32 músicas tocadas em uma hora e meia de show. 22 delas tocadas uma atrás da outra, sem pausa, como fazia o Ramones, entrecortadas apenas por um rouco “one-two-three” e a pauleira comia solta de novo. Na volta do biz, nada de punk, mas apenas Michale Graves no violão, num desnecessário anti-climax. Passou, foram apenas três músicas, e a banda voltou pra terminar a celebração que marcou Natal . A versão de “What a Wonderful World” “Beat On The Breat”, “Commando” e “Blitzkrieg Bop”, com todos aclamando o grito de guerra que marcou a banda. Dois biz e uma noite feliz, suada, histórica, inesquecível para quem cresceu ouvindo falar dos shows dos Ramones. Não eram eles, mas era como se fosse.