Em Nome da Estrela, aguardado segundo álbum da cantora, flerta com pensamentos místicos e sonoridade jazz pop
Marcelo Argôlo*
Mais do que se vestir com cores reluzentes e trabalhar com sons eletrônicos, eu defendo que o afrofuturismo na música deve trazer uma proposta de continuidade, pois é isso que é negado aos corpos negros. A possibilidade de continuar existindo é, ou deveria ser, ser uma condição básica para a condição de humanidade. E pensar em afrofuturismo é colocar em questão e/ou em ação uma proposta de continuidade plena, com as crenças, valores, costumes e tudo mais que comporta o universo da cultura negra e afrodiaspórica.
A cantora e compositora baiana Xênia França, desde o seu primeiro trabalho, já tem uma proposta consolidada de uma estética afrofuturista. Agora em Em Nome da Estrela, ela aprofunda essa relação. Depois dos embates com o mundo externo que guiaram seu álbum de estreia, a artista faz um mergulho interior e reflete sobre as necessidades de transformação e de fortalecimento internas para um desenvolvimento da confiança para lidar com o ao redor.
Musicalmente ela passeia pelos menos elementos que conhecemos no primeiro álbum: uma espécie de jazz pop construído em cima de claves rítmicas da música afro-brasileira e misturado com beats, synths e outros elementos da música eletrônica. A escolha por repetir o trabalho em estúdio com os produtores Pipo Pegoraro e Lourenço Rebetez mostra a intenção de voltar a explorar o mesmo universo sonoro do álbum anterior. Como se ainda tivesse capacidade novas possibilidades para extrair desse lugar, o que de fato se mostra no disco.
Com 9 canções e 3 intertúdios, o trabalho traz seis canções compostas por Xênia com parceiros e mais uma composição da paulistana Luiza Lian e releitura de “Futurível”, de Gilberto Gil, e “Magia”, de Djavan. Divididas em blocos, separadas pelos interlúdios, as canções refletem sobre autoconhecimento, tecnologia, religiosidade, além de flertar com questões transcendentais e místicas.
Logo de entrada, com as duas primeiras faixas, Xênia consegue resumir bem o conceito do trabalho e apresentar um cartão de visitas. O álbum abre com “Renascer”, canção que foi apresentada semanas antes do lançamento como single e traz uma letra pessoal e intimista de tom existencialista. Xênia canta versos como “Rezo preces na solidão / Pra seguir o meu coração / E deixar curar / Me encontrar no fundo da alma” em cima de um instrumental de harmonia e rítmica sofisticadas, além de camadas de textura e climas que dão um ar etéreo à canção.
Já “Interestelar”, a faixa que vem logo em seguida, quebra o clima ameno com um ritmo pulsante e firme, mas sem perder a sofisticação rítmica e harmônica. A letra, por sua vez, aposta em símbolos transcendentais, como “tempo interestelar”, “quinto elemento” e “prisma do olho solar”, mas coloca em um contexto afrocentrado com versos como “Despacho registro, alquimia / Um ouro, magia da pele noir”.
No show, que apresentou em junho no Teatro Castro Alves, Xênia adiciona a camada visual ao trabalho. Projeções que exploram símbolos futuristas, como os efeitos cintilantes, muito brilho e referências ao espaço sideral colocam os temas da ancestralidade africana num lugar de inovação e experimentação, o que rompe com uma representação tradicional.
Dessa forma, Xênia França se consolida como uma referência de afrofuturismo na música brasileira com o álbum Em Nome da Estrela. Seja pelas letras, pela musicalidade e pela proposta visual, a cantora e compositora baiana cria no trabalho um universo poético em que a cultura negra existe para além de representações que buscam resumi-la em adjetivos como arcaico e tribal.
O que Xênia faz é construir um álbum que usa elementos cintilantes e tecnológicos, para pensar um lugar de inovação para a cultura negra. Assim, o afrofuturismo é apresentado em toda a sua potencialidade e ganha caráter político-estético para se tornar instrumento crítico ao racismo.
*Marcelo Argôlo é jornalista e pesquisador musical. Mestre em Comunicação pela UFRB, é autor do livro Pop Negro SSA: cenas musicais, cultura pop e negritude.