Radicado na França, Lucas Santtana lança seu nono álbum de estúdio promovendo uma mistura de música brasileira, jazz e eletrônica.
Por Jorge Lz*
2023 chegou com a esperança de tempos melhores com a vitória da democracia sobre a continuidade de um projeto sombrio, que provocou enorme retrocesso em todos os sentidos. Ainda que a terra esteja arrasada, a sensação é que, semeando e cuidando, conseguiremos colher bons frutos e será possível retomarmos o caminho do crescimento e de uma sociedade mais justa.
Neste cenário, mal começou o ano e somos agraciados com uma obra que dialoga perfeitamente com a gravidade do momento que passamos, ao mesmo tempo em que nos chama a atenção para as possibilidades de mudança que temos diante de nós. Assim é “O Paraíso”, nono álbum de estúdio do artista baiano Lucas Santtana.
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Concebido durante a pandemia, o álbum traz o olhar de Lucas sobre a crise climática e a necessidade de nos reconectarmos com a natureza. Uma vez que vivemos no único planeta habitável do sistema solar, nada mais lógico que tenhamos cuidado com nosso habitat natural. “Sim, sim, sim! O paraíso já é aqui […]” é o que canta, logo na abertura do álbum, na faixa título, para logo depois, na faixa “Vamos ficar na Terra”, afirmar: “[…] ô Ninha, vamo ficar na Terra… aqui dá pra plantar e o que se colhe come, pra matar a sede, bebe água na fonte… tem rio e cachoeira pra tomar um banhozinho […]”.
Em dez canções, oito composições próprias, sendo duas em parcerias (“What’s life”, com Lynn Margulis e “Muita pose, pouca Yoga”, com Daniel Lisboa) e duas releituras (“Errare humanum est”, de Jorge Benjor e “The fool on the hill”, de Lennon & McCartney), Lucas desenvolve com propriedade o conceito, criando um discurso lírico, sensível e reflexivo, em português, francês, inglês e espanhol.
Esteta e sempre cuidadoso com a sonoridade, uma de suas marcas registradas, Lucas assinou a produção ao lado do francês Frédéric Soulard, que também foi responsável pela mixagem. A leveza, que está presente na forma como Lucas construiu o discurso, também está presente na sonoridade, com um perfeito equilíbrio entre o orgânico e o eletrônico, ornando canções que misturam ritmos afro-brasileiros, bossa e pop.
“O paraíso” traz as participações das cantoras Flavia Coelho e Flore Benguigui, respectivamente nas faixas “Muita pose, pouca Yoga” e “The fool on the hill”. Os arranjos foram feitos pelo Lucas, sendo “La biosphere”, “A transmissão”, “Vamos ficar na Terra”, “Muita pose, pouca Yoga”, divididos com Frédéric Soulard e “No interior de tudo” e “The fool on the Hill”, divididos com Laurent Bardainne. A exceção é “Errare humanum est”, arranjada apenas por Laurent Bardainne, arranjo fabuloso, diga-se de passagem, que desconstruindo o original, somado à interpretação de Lucas, nos leva, inevitavelmente, a pensar na viagem ao espaço promovida por bilionários, em suas espaçonaves particulares: “[…] tem uns dias que eu acordo pensando e querendo saber de onde vem o nosso impulso de sondar o espaço […]”.
Contundente, “O paraíso” é um forte exemplo da arte como ferramenta de reflexão e transformação, o que por si só já seria o suficiente. Porém, Lucas Santtana vai adiante e, com extremo apuro técnico e estético, coloca o álbum em um lugar cativo entre os trabalhos mais interessantes e importantes lançados nos últimos tempos.
* Jorge LZ é , radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ, produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, e é curador do Festival Levada.