Ventura Profana é o destaque desta semana entre os discos lançados por artistas baianos em 2020. Escritora, cantora, performer, artista visual nascida em Catu, ela lança seu primeiro EP, o ousado ‘Traquejos Pentecostais Para Matar o Senhor’, que ganha resenha de Julli Rodrigues.
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Por Julli Rodrigues*
A vivência dentro das igrejas evangélicas e católicas não é incomum aos jovens LGBTQIA+ nascidos no seio da família tradicional brasileira. Levados a esses espaços por um conservadorismo que busca corrigir todo aquele que desvia da (hetero) norma, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais acabam tendo sua subjetividade marcada pela religião cristã. Em muitos casos, estar na igreja abre portas para a expressão artística dessas pessoas. É o caso da drag Pabllo Vittar, que já disse em entrevistas ter começado a cantar em um templo presbiteriano que frequentava quando jovem.
Assim como a mais famosa drag brasileira da atualidade tem “Rajadão”, música claramente inspirada na estética gospel e lançada em seu mais recente álbum, a cena musical da Bahia tem Ventura Profana, multiartista travesti que deixou a Igreja Batista para se dedicar a outro tipo de evangelização. Um dos resultados desse trabalho é o EP ‘Traquejos Pentecostais para Matar o Senhor’, lançado no último mês de julho e produzido pela artista baiana em parceria com Podeserdesligado.
Com pouco mais de 23 minutos de duração e ambiência sonora eletrônica, o EP reúne seis faixas autorais onde Ventura se apropria de simbologias e polêmicas do cristianismo contemporâneo para cutucar a onça do conservadorismo com vara curta. Ou com botas de píton. A citação ao chiquérrimo calçado nos leva à primeira faixa do álbum, “Python”, que faz referência a um testemunho da cantora gospel Ana Paula Valadão (veja abaixo): em 2010, a artista causou controvérsia ao afirmar, durante um culto, que Jesus lhe disse para comprar uma bota de couro de cobra, com a qual pisaria em “principados e potestades”.
A expressão que designa classes espirituais, anjos e demônios também aparece na letra da música de Ventura, em outro contexto. Aqui, como em todo o disco, o discurso predominante é o da travesti negra que pisa na cabeça do senhor e resgata suas raízes. Não de Jesus, mas de uma ideia de poder representada pelo macho branco e hétero, como a artista explicou em entrevista ao jornal Correio. É na contundência dessa mensagem de combate a outro inimigo – apresentado como herói pela narrativa hegemônica – que o álbum se apoia. A música, quase sempre sombria, flerta com o noise e o synthpop, mas serve mais como veículo para o “evangelho” da artista, o que quase sempre resulta em melodias pouco inspiradas.
Outra citação ao universo gospel contemporâneo está em “Homenzinho Torto”, que pega emprestados o título e parte da estrutura de uma canção infantil de domínio público gravada por Aline Barros. Aqui, o homenzinho torto não se endireita ao encontrar a Bíblia, mas é derrubado ao encontrar a “trava” (travesti). É mais uma entre tantas ressignificações trazidas por Ventura, que também usa termos comuns ao léxico cristão evangélico para criar verdadeiros louvores contra-hegemônicos. A artista ainda faz referência a versículos bíblicos, como Atos 2:17 em “EU NÃO VOU MORRER”, primeiro single do disco – “As velhas terão sonhos / as jovens terão visões” -, e 1 Coríntios 2:9 em “Vitória” – “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram / o que foi preparado / pras que foram perseguidas por ser trava no sistema”.
Com pegada de hino gospel, “Vitória” é também a faixa mais interessante do álbum, musicalmente falando. O arranjo alia elementos techno e synthpop dos anos 80 e 90, com direito a um timbre análogo ao clássico baixo de Minimoog na introdução. O discurso é afiado como em todas as outras canções, com versos como “Contra mim todo macho retrocederá /Nome de travesti tem poder”, mas nesses três minutos e vinte e quatro segundos, o ouvinte se sente diante de um trabalho musical completo, com letra e melodia, o que nem sempre acontece no restante do Evangelho segundo Ventura.
Em ‘Traquejos Pentecostais Para Matar o Senhor’, Ventura Profana cumpre seu papel de conclamar todas as “travas” e “bixas” pretas a ingressarem numa cruzada contra o opressor: o homem cis, branco, hétero. Com apropriações inteligentes da linguagem e da simbologia evangélica, a multiartista ressignifica a formação que a Igreja lhe deu e transforma a doutrinação cristã em afiada arma de guerra, ainda que as melodias fiquem pelo caminho enquanto ela avança.
Julli Rodrigues é jornalista formada pela UFBA. Atualmente, trabalha na Rádio Metrópole FM como repórter. Apresenta a série mensal “A Música no Tempo” no Especial das Seis da Educadora FM, sobre o contexto da MPB entre os anos 60 e 80, e escreve análises sobre música e áudio no blog Ouvindo Coisas.