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Discos: Melly depura sofrimentos com pop melancólico em ‘Amaríssima’

Melly - Amaríssima
Our Score
3.7

Uma das revelações da música baiana, Melly tem trilhado um caminho ascendente com seu timbre particular e sonoridade pop r&b. Cantora e compositora de 23 anos, ela surgiu com um ótimo single e logo foi tratada como um dos nomes de renovação da cena baiana, inclusive por nós. Passou a circular em festivais pelo país, conquistou prêmios, foi selecionada pelo edital do Natura Musical e agora lança o primeiro álbum, que nossa colaboradora Julli Rodrigues disseca abaixo.


Por Julli Rodrigues*

Após o bem-sucedido EP Azul (2021) e uma série de singles que contribuíram para firmar sua identidade artística, a cantora e compositora soteropolitana Melly, artista revelação de 2023 no Prêmio Multishow, lançou no último dia 28 de maio o primeiro álbum da carreira, Amaríssima. O disco, inteiramente autoral – com parcerias ao longo das 12 faixas – traz no título o superlativo da palavra “amarga” e se propõe a tratar das dores vividas pela artista como ponte para o aprendizado. Se, por um lado, as letras abordam sentimentos não tão doces, como o abandono, o preterimento e a dor de amor, por outro lado a musicalidade diversa e suingada envolve o ouvinte a ponto de quase distraí-lo da melancolia dos versos.

Com direção musical da própria artista, Amaríssima passeia por gêneros como pop, R&B, soul e amapiano. Algumas faixas são permeadas por timbres dissonantes, como a dançante “Falar de Amor”, que abre o disco e trata da incerteza de um relacionamento que está fadado a terminar; e o misto de pagodão e R&B “Derreter & Suar”, que expressa de forma lírica a comum situação do jogo de desinteresse em uma relação líquida. (Esta última, por sinal, é perfeita para mandar como indireta para aquele crush que não ata nem desata.) O fato é que a sutil presença de dissonâncias nos arranjos das duas faixas contribui, em grande medida, para criar certo “desconforto” no ouvinte, como uma cama de estranheza por baixo daquilo que parece palatável. É um bom desconforto. Talvez tenha sido um recurso para lembrar que a amargura está ali, sim, embora não pareça.

Algumas faixas tangenciam uma atmosfera sensual baseada no trap, como “Paraíso” e “10 Minutos”. Esta última conta com a participação da cantora e compositora Liniker, além da presença muito bem-vinda do violoncelo de Ubiratan Marques e de uma esperta referência geográfica soteropolitana na letra: “Daqui de Brotas para onde ‘cê tá acho que são só dez minutos”.

Já outras canções bebem na fonte do suingue do samba-reggae para contar histórias não muito alegres: “Bandida”, um dos principais singles do álbum, fala de um relacionamento que parece divertido, mas é problemático; enquanto a solar “Cacau” faz um jogo de palavras com a expressão “o cacau caiu”, usada em Salvador como sinônimo de chuva forte, para tratar de um desencontro amoroso.

O passado e o futuro podem ser fontes de angústia, e isso também está representado em Amaríssima. Sétima faixa do álbum, “Rio Vermelho” traz um olhar sobre a ansiedade em relação ao que está por vir. A canção foi composta durante a pandemia de Covid-19 e traz a participação do cantor e compositor Russo Passapusso. A presença do BaianaSystem na música não se limita ao feat do vocalista, já que os integrantes Ícaro Sá (baixo), Jackson Costa e Junix (guitarra) também participam da faixa. A produção é de Ícaro Santiago, Eric Manigga e… SEKO, do BaianaSystem. Ou seja, por pouco “Rio Vermelho” não foi uma colaboração entre Melly e o Baiana. Já “Domingo (Missin’ Something)” é pautada em lembranças de fins de semana tranquilos que não existem mais.

Amaríssima é encerrado pela bela, classuda e melancólica “Bye Bye” e pela intimista “extra: ‘um poema com minha letra (gaveta)'”. Nesta última, acompanhada apenas de um violão, Melly entrega uma interpretação intensa e ao mesmo delicada, que ressalta as melhores regiões de sua voz.

Quando se pensa unicamente na carga dramática e na melancolia de Amaríssima, dá para traçar um paralelo com dois outros álbuns de artistas negros baianos: Nebulosa Baby (2021), de Giovani Cidreira, e Bluesman (2019), de Baco Exu do Blues. Em ambos os casos, tal qual no disco de Melly, sonoridades eletrônicas, calmas, dançantes e/ou sensuais são usadas para falar de temas não muito doces: solidão, depressão, incerteza, ansiedade e sofrimento. A atmosfera é muito semelhante, nesse sentido, já que a beleza e a intensidade são tamanhas que quase chegam a se sobrepor às mensagens.

No entanto, ao contrário do que ocorre nas obras de Cidreira e Baco, Melly não chega a abordar diretamente temas ligados à sua vivência atravessada pela negritude – ou seja, a visão do amor enquanto mulher negra, como faz Luedji Luna em Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água (2020) e BMDA Deluxe (2022). Tudo é sobre seus próprios sentimentos, percepções, encontros e desencontros. Nesse sentido, Amaríssima se aproxima um pouco de Meu Esquema (2022), álbum de estreia da feirense Rachel Reis, no qual também há uma abordagem muito pessoal – e ao mesmo tempo universal – sobre relacionamentos.

O fato é que Melly conseguiu, em Amaríssima, depurar toda a melancolia para transformá-la em um caleidoscópio de experiências capazes de gerar identificação no ouvinte. Há músicas para ouvir na sarjeta da sofrência, em um passeio de carro no sábado de manhã, no clima da expectativa por um encontro, na nostalgia do domingo à tarde. O resultado é tão refinado que a gente nem sente o gosto amargo. Ou às vezes até sente, mas gosta mesmo assim, apreciando cada nuance. Como um bom chocolate.
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* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter da BandNews FM. Mais detalhes sobre a autora aqui.

Melly - Amaríssima
Melly - Amaríssima
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