Entre tantos trabalhos lançados durante esse ano, selecionamos três deles para voltar a comentar especificamente sobre álbuns depois de um bom tempo sem dar conta. É apenas o retorno dessa seção, onde os álbuns do baiano Mateus Aleluia, da banda Nantes e de Nando Reis ganham nossa análise.
Mateus Aleluia – Cinco Sentidos
Existem certos ambientes que, assim que você tem contato, é subitamente absorvido por uma energia diferente, como se algo não explicável dominasse o espaço e te dominasse. Isso às vezes acontece na música. É assim que as sensações são guiadas ao se ouvir “Cinco Sentidos”, primeiro disco solo de Mateus Aleluia, 66 anos e único integrante vivo do grupo vocal seminal Os Tincoãs. Criando uma ambiência quase sacra, que remonta a ancestralidade africana, com uma delicadeza e beleza peculiar, o cantor e compositor Mateus Aleluia fez em seu primeiro disco uma obra de referência ao Candomblé e aos ritmos negros. Mais do que isso, com suas músicas cria uma atmosfera que domina o ouvinte, arrebata sensações que costumam ficar adormecidas e impregna a alma de religiosidade. A música de Mateus, assim como na época d’ Os Tincoãs, sempre esteve em sintonia com cultos, cânticos e toques afro-sacros, com menções ao candomblé e ao que lhe cerca. Já indica isso em “Ogum Pá”, que abre o disco apenas com sua voz forte e grave repetindo “Ogum Pá ê Iemanjá Koroaè” como um mantra acompanhado apenas de um piano. Mantém a atmosfera de religiosidade no decorrer do álbum. Religião não como instituição, mas como fé, transcestralidade, amor, paz. Os ritmos negros, africanos, ancestrais, são de outra monta, não são aqueles folclorizados no carnaval, mas células rítmicas trazidas dos rituais e das sensalas. Com participação da linda voz da filha Fabiana Aleluia, Mateus convida a todos pra celebrar o cinza na linda “Amor Cinza”. A cantora aparece ainda no belo samba “Palavra que Reza” e na regravação d’ Os Tincoãs, a imortal e clássica “Cordeiro de Nanã”, que conta com Mateus recitando ao som de atabaques, piano e trumpete. O grupo vocal ainda é citado em “Lamento às Águas/ Na Beira do Mar”, de novo com a voz de Fabiana se contrapondo ao grave de Mateus e trazendo a tona cânticos afro religiosos. Em outra bela composição, “Despreconceituosamente”, mostra-se como um poeta da negritude, mas sem panfletarismo, apenas clamando pelo amor. Essa leveza e calma transpassa por todas as onze faixas do álbum, num percurso pela África, Brasil e Bahia, mostrando um artistas com um conhecimento raro do que são os toques, modos de cantar e todo o universo afro-sacro. Com arranjos do próprio Mateus ao lado de Ubiratan Marques, também responsável pelos arranjos e regência de cordas, madeira e metais, o álbum é uma experiência musical e religiosa em sua essência. O que permanece é um sentimento incomum de paz interior e uma reverência ao intangível e sagrado. Daquelas obras que dominam a alma e arrebatam.
Por mais desconhecida que seja a música de Sergipe, o estado já vem tendo uma certa tradição de boas bandas no cenário do rock independente. Uma das boas revelações de 2010 vem de lá, a banda Nantes, que no seu primeiro disco “Alvorada” se coloca entre os bons nomes do rock atual. O grupo mostra já na estreia um apurado senso melódico na criação de belas canções, aliado a arranjos cuidadosos e uma produção caprichada, desde a arta gráfica até as gravações, que resultam num trabalho de alto nível e que oferece um clima “beach boyniano” difícil de se ver por aqui. Chama atenção o cuidado nos arranjos em busca de uma sonoridade que, se não é exclusiva também não é simples e de fácil obtenção. Seguindo o caminho definido por Brian Wilson a frente do Beach Boys, especialmente na fase “Pet Sounds”, a Nantes investe em um delicado trabalho de arranjos vocais e numa instrumentação repleta de detalhes. Na frente aparece o vocalista Arthur Matos, também compositor e violeiro, com uma voz segura e que, como poucas, funciona muito bem tanto nos momentos em que se utiliza de falsetes para demonstrar leveza quanto nos que exigem um canto mais forte e seguro. O cuidado com os arranjos vocais, no entanto, ganha ainda mais destaque no belo coro de vozes que faz o acompanhamento, presente em todo o disco e que evidencia a opção por imprimir um elevado astral de luar na praia. O pé nos anos 60 está em todo o disco, com referências claras, mas soando atual, sem parecer um som datado. Algo de quem sabe o que está fazendo. Além do preciso trio guitarra, baixo e bateria, por conta, respectivamente, de Fabrício Rossini, Lelo Soares e Ravy Bezerra, a Nantes rebusca sua sonoridade,sempre priorizando a força melódica, com a inclusão do violão de Artur, o teclado/ piano de Rafael Eugênio e percussões. Com a participação de convidados especiais adicionam às músicas mais detalhes e apuro, inserindo, por exemplo, acordeon na bela “Um Dia na Vida”, que abre o disco falando de deus e já indicando de início o que vem dali em diante. Segue então músicas que remetem ao Beach Boys, Beatles e influências geradas por eles, como o Clube da Esquina e as bandas indie Fleet Foxes. Em “Talvez Você Possa Cantar”, a banda adciona banjo, guitarra barítono e lap steel, essas últimas aparecendo ainda em “Bem Vinda Chuva”. Destaque ainda para “Velha Estante” e a linda “Os Castelos”. Não por acaso o disco remete ao clássico “Pet Sounds”, com um cuidado no uso de instrumentos não usuais, inserção de detalhes, jogo de doces vozes e primor nos arranjos, e, claro, faltando apenas refrões ainda mais inesquecíveis, a competência em criar boas canções. Sem elas, aliás, todo o resto não funcionaria e ai está um dos méritos do grupo, saber combinar os elementos e fazer músicas pra fechar os olhos e cantar junto. Tente.
Download: Alvorada (2010)
Gravadora: Pisces Records
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Bailão do Ruivão MTV Ao Vivo – Nando Reis
Sabe quando você vai numa festa e o DJ apela apenas para os hits óbvios e que você ao invés de se divertir se chateia? A sensação ao ouvir o novo disco de Nando Reis, “Bailão do Ruivão MTV Ao Vivo”, é mais ou menoes essa. O cantor e compositor reúne 18 músicas, hiper sucessos de várias épocas, sem nenhuma contribuição à canções, sem nenhuma mudança consistente nelas, sem nem ao menos fazer versões interessantes. Se você tem um mínimo de exigência não espere se divertir ouvindo Nando Reis tocando essas músicas. Esqueça. Ele engata uma sequência de canções famosas e óbvias, reunidas de forma fácil e previsivel. Algo que qualquer banda de axé de quinta categoria faria no Carnaval baiano. O pior é saber que Nando Reis meio que sabota sua própria carreira, já que era um dos poucos vindos da geração anos 80 que trazia um trabalho consistente e criativo como compositor. Nesse disco sua obra fica em segundo plano. O foco está em promover uma grande festa com os tais sucessos, então capricha no óbvio com “Whisky a Go Go”, do Roupa Nova, “Bichos Escrotos”, de sua ex-banda Titãs, “Agora Só Falta Você”, de Rita Lee. Aposta no tal ecletismo, tentando agradar a todos o máximo possível, injetando pérolas da música nordestina, como “Severina Xique-Xique”, de Genival Lacerda, e “Frevo Mulher”, de Zé Ramalho. Tenta capturar o público que gosta de reggae, com “I Can See Clearly Now” de Johnny Nash, sucesso com Jimmy Cliff, e “Could Be Loved”, de Bob Marley, com participação da Banda Zafenate (?). Canções que em sua maioria nem são ruins, longe disso, mas que não precisavam de releituras desse tipo a uma altura dessas. O disco não é um lixo porque traz canções populares recentes e questionáveis, como as apelativas “Chorando Se For (Llorando Se Fue)” com participação de Joelma e Chimbinha do Calypso; ou a exaustiva “Você Não Vale Nada”, sucesso com o grupo Calcinha Preta, ou ainda “Você Pediu e Eu Já Vou Daqui” e “Do Seu Lado”, com Zezé Di Camargo & Luciano. É ruim porque não tem absolutamente nenhuma utilidade, não soma em nada, pelo contrário, subtrai. Serve para referendar um discurso enfadonho de que não há boas novidades na música brasileira e reforçar a paralisia do gosto médio do brasileiro ainda focado nas mesmas coisas de 20 anos atrás, com algumas poucas e pesarosas exceções. O ex-Titã poderia gravar um disco de versões, até com sucessos, mas menos previsível, oferecendo algo mais do que todos já conhecem. Ou podeira ao menos se esforçar para melhorar as músicas ou, ao menos, adcionar algo a elas. Tocar uma música ou outra num show pode ser até divertido, mas apostar sua obra na obviedade é um exemplo de como tratar de forma superficial público e a própria música brasileira. Não precisa gravar só músicas obscuras, desconhecidas, ou artistas novos, mas o mínimo seria tentar oferecer algo além do mais do mesmo. Taí o Pato Fu, que recentemente gravou um ótimo disco apenas com versões de sucessos, que não nos deixa mentir. Nando Reis perde uma ótima chance de ficar calado. Ele não precisava disso, nem comercialmente falando. Depois reclamam que o mercado fonográfico está ruim.
Gravadora: Universal Music
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