Jovem artista baiana, Jadsa vem trilhando um caminho exitoso numa trajetória curta, mas de acertos em cada trabalho lançado e que já denota um talento especial. Depois de dois EPs, ela chega agora com seu primeiro álbum cheio, Olho de Vidro, que consolida escolhas que vinha delineando nos trabalhos anteriores. O novo disco ganha aqui a análise de Pedro Gusavaqui. Leia e ouça.
Veja também:
– Os lançamentos dos primeiros dias de abril que você não deve perder.
– Discos: música brasileira ao modo Flerte Flamingo.
Por Pedro Gusavaqui*
É impossível tentar descrever ou compreender o evento que é ouvir a Olho de Vidro, primeiro álbum cheio da cantora, compositora, multi-instrumentista e produtora Jadsa. Em frases soltas que talvez ecoem um sentido, Olho de Vidro é jazz da Bahia; é a potência da voz de Jadsa; é exímia produção musical; é volume no ponto certo; é o estranhamento.
O álbum, contemplado pelo edital da Natura Musical, e que é lançado e distribuído pela Balaclava Records, conta com 14 músicas e um total de 46 minutos de duração. É, essencialmente, uma obra de musicista pra musicistas e músicos. Isso quer dizer que ele não é facilmente tragado pela maioria. Como se diz: não é biscoito fino pra massa, é massa pra biscoito fino.
Olho de vidro é um apanhado de efervescência musical, das mais eruditas e sofisticadas. É um típico som que tocaria num consagrado festival de jazz. Quero dizer, é um conjunto de músicas que com certeza dividiriam espaço numa lineup em que Nina Simone, Miles Davis, Elis Regina e Hermeto Pascoal estariam. Na verdade, esse álbum tem um imenso apelo internacional e que não perde em nada para o que é feito lá fora.
É nítida a evolução da Jadsa do EP Godê pra Jadsa de Olho de Vidro. É uma musicalidade encorpada, com carcaça, com sabedoria. Ambos têm um estranhamento, mas aqui Jadsa sabe o que quer fazer; ela sabe o que quer dizer. Sua evolução é notada pela escolha dos caminhos melódicos das guitarras, dos baixos, das magníficas aberturas de vozes (como em “Sem edição”, por exemplo).
Seria um erro resenhar esse disco sem mencionar o claro mergulho que Jadsa dá na obra e na essência de Itamar Assumpção, talvez, então, a origem dessa evolução. Jadsa, desde o uso transversal de “Nego Dito”, de Assumpção, em “Olho de Vidro”, até o uso de sobreposições sonoras orbita o “o que” e o “como” Itamar fazia sua música sob as condições de sua época, com elementos orgânicos e não virtuais. Então, é grandioso o legado, o caminho, pelo qual Itamar seguiria caso ainda estivesse fisicamente presente.
Jadsa carrega esse legado como pela valorização dos coros (lindos) em sua obra, como brilhantes meios harmônicos da construção da identidade da faixa. São verdadeiros instrumentos musicais. Jadsa carrega esse legado com o groove do baixo que imprime o balanço clássico que o cantor da Vanguarda Paulista tinha. Jadsa ainda se vale da palavra falada, quase conversada informalmente, num primor, como Itamar.
Ouça Olho de Vidro:
Adentrando o quesito do discurso, a palavra atua como a expressão de uma poesia concreta que usa a instrumentação como sua tonalização, ou vice versa. Algo como Arnaldo Antunes fez em seu disco Nome. Ou seja, pode ser que o lexema seja um adereço ao discurso musical em si, visto que as estruturas cíclicas das tracks são, em resumo, temas a serem percorridos em jams.
Jadsa opta por, apesar de utilizar de elementos pop anos 70 como cowbells ou uma sensação de congas à lá Paulinho da Costa, deliberadamente romper com padrões estéticos. Ela, que também assina como diretora artística e produtora do projeto, consegue nos levar a um suingue dançante na faixa que dá nome ao disco.
Olho de Vidro possui uma textura e uma densidade que poderia ser um movimento de um show performático. Poderia ser trilha de um espetáculo de dança ou a trilha de uma peça teatral. Jadsa capta a necessidade de se contar uma plena história, tal qual sua “entidade” ovacionada, Itamar Assumpção. A ambientação com uso de sons de carros, sirenes, sua voz cantada de modo diferente no L e no R ou a alternância da guitarra no estéreo dão a profundidade tátil e visual das camadas e subcamadas da obra – assim como o cantor paulista prezava.
Sobre participações em seu disco, Jadsa estreia tendo apoio de nomes de peso como João Meireles (Baiana System) que também produz o álbum; a indicada ao Grammy Latino, Ana Frango Elétrico; a cantora e compositora paulista, Luiza Lian; o consagrado Kiko Dinucci; e a cantora, compositora e produtora musical, Josyara.
Em síntese, Olho de vidro é um disco extremamente sofisticado, que maneja primorosamente claves do reggae, do pagodão (que até mesmo podem passar despercebidas), que faz críticas à apropriação cultural e que traz, em suas últimas faixas, uma Jadsa intérprete que me remeteu automaticamente à Cássia Eller – alguém que, assim como Jadsa, tem voz potente e gritava pra ser ouvida, mas se fez ouvir nos silêncios e na mansidão, com o passar dos anos. Jadsa é mestre na sabedoria do uso da voz poética, política e física.
Portanto, quando for ouvir a Olho de Vidro, vá com alma, mente e peito abertos. Não é uma leitura fácil. É um desafio empolgante. É um choque. Mas é sumariamente aprazível e enérgico. É erudição.
_______________________________________
* Pedro Gusavaqui é estudante de Licenciatura em Letras Vernáculas na UFBA, poeta e compositor. Entusiasta da nova leva de artistas brasileiros, passou a analisar e a escrever sobre eles em sites especializados em música e cultura.