Com influências que vão da Tropicália e Manguebeat até os nomes da música baiana atual, como BaianaSystem, ÀTTØØXXÁ e Afrocidade, os irmãos Guga e Marcelo Barbosa, lançam o álbum de estreia da Vitrolab, que antes se chamava Vitrola Baiana. Integralmente composto, arranjado e produzido pelos irmãos Guga e Marcelo, Mais Humano conta com a co-produção e finalização do produtor baiano André T, do Estúdio T. Os poetas Edmundo Carôso e Dino Correia também assinam composições em parceria com os dois irmãos. Lançado em todas as plataformas digitais a partir da parceria com a distribuidora baiana Musequal, o trabalho ganha resenha crítica do jornalista Diego Pinheiro.
Texto de Diego Pinheiro*
O duo é soteropolitano e possui apenas oito anos. Apesar da pouca idade, o Vitrolab passou por um profundo período de aprendizado e amadurecimento durante o período do isolamento social imposto pela pandemia. Desse estado de reclusão e refletindo sobre tempos pós-Covid nasce Mais Humano, o disco de estreia da dupla.
O som dos metais é ouvido junto ao compasso cambaleante e embrionariamente swingado do beat. Apesar de ter base rítmica fincada na estética do ragga e com pinceladas de chá-chá-chá através da desenvoltura da guitarra, ‘Adeus Babilônia‘ é uma música em que Guga (voz e guitarra) e Marcelo Barbosa (voz e programações) vão fazendo de suas vozes o principal artifício sonoro a desenhar a melodia da faixa, uma produto sonoro que promove uma visão invertida do êxodo rural. Em meio à loucura do relógio e da rotina acelerada, o desejo pela simplicidade e pela pureza das coisas rege cada vez mais a identidade das novas gerações, que se veem movidas pelo senso de humanidade e fogem dos conceitos capitalistas de consumo e posse.
A conjuntura das sonoridades empregadas pela programação imputa a impressão de um mantra hipnótico. Sem demora, os irmãos já vão evidenciando uma mensagem lírica que preza pela atenção aos detalhes da vida, à reenergização do espírito, um novo olhar sobre o ato de viver. ‘Solar’ é como uma aula que ensina a arte do agradecimento, da gratidão e da felicidade em poder abrir os olhos e fazer, a cada manhã, um novo começo.
Uma mensagem acaba de chegar ao celular. Enquanto isso, um som suave vai desenhando contornos de aparência astral e quase transcendental. Contudo, um rompante regido pela guitarra distorcida em riff áspero acompanhada de golpes explosivos da bateria despedaça a calmaria e um lirismo de extrema atualidade vai se evidenciando. Misturando elementos do chiptune, e do avant-garde, ‘Fake’ é uma canção de lirismo imponente, crítico, imediato. Analisando as fake news como uma droga viciante, cujos efeitos são a disseminação desenfreada de suas informações, o Vitrolab observa um estranho senso de representatividade sentida pela sociedade frente ao fenômeno das notícias falsas como uma demonstração de puro desamparo e até mesmo desesperança. Pela conjuntura da obra, ‘Fake’ pode ser considerada o primeiro single de Mais Humano.
A guitarra distorcida e áspera traz uma imersão no campo do rock que flerta com subgêneros como o rock alternativo e o post-grunge. Quando as notas de teclado invadem a cena com uma sonoridade ácida e entorpecida, a cenografia dos anos 70 é completa. Caindo sob a base new wave, ‘Pega Fogo!’ acaba também por beber da fonte do synth-pop enquanto que o lirismo fala sobre fé, traição e a corrupção da índole do indivíduo ocasionada por eventos do imprevisível. Tudo isso a partir da história do personagem Tonho Bancarrota.
O som estridente, ácido e estranhamente adocicado trazido pela programação favorece novamente uma ambiência synth-pop. Curiosamente, a melodia proporcionada por tal sonoridade recria a cadência lírica que MC Kevinho assume ao pronunciar as primeiras palavras do refrão de ‘Olha A Explosão’, seu single em parceria com KondZilla. ‘Amor Faz Bem’ é uma faixa que avalia de maneira crítica a indústria alimentícia que produz alimentos cada vez mais industrializados. De outra ótica, o que o Vitrolab pretende aqui é lançar luz sobre a realidade das populações humildes que não podem ter uma alimentação saudável por conta do alto valor cobrado em determinados produtos. No fundo, ‘Amor Faz Bem’ é sobre a pobreza e como as pessoas que nela se encontram sobrevivem. O interessante é que a melodia construída na faixa a torna digestível de maneira a transformá-la em um single crítico que, pelo movimento contagiante do beat, suaviza a seriedade de seu lirismo. Indiscutível e inevitável coloca-la afrente de ‘Pega Fogo!’ na posição de single mais importante do disco.
Uma sonoridade sensualizada ambientada em uma noite de verão abraçada pela luminosidade intensa da Lua cheia se pronuncia. ‘Daisy Desirée (Catraca Sextavada)’ é, assim como ‘Maria Navalha’, faixa de Zé Bigode Orquestra, o retrato da marginalidade da sexualidade na sociedade moralista e conservadora que povoa o Brasil na atualidade. De outro lado, a canção do duo soteropolitano pode também estar representando o mercado das drogas e o efeito que elas causam em seus consumidores. De toda a forma, essa é mais uma canção de lirismo inquietante presente no álbum.
A sonoridade aguda e eletrônica sugere curiosamente a criação de imagens geométricas na mente do ouvinte. De repente, um golpe preciso, áspero, cheio de pressão uníssona é feito pelo som do bumbo da bateria com a aspereza da distorção da guitarra. Pronunciado de maneira pontual, mas frequente, esse punch entrega peso e um aroma potencialmente imponente para a melodia que se encontra em processo de elaboração.
Crítica e ao mesmo tempo lúdica, ‘Trigonometria’ é uma canção que se utiliza de diversos elementos do campo da homônima área da matemática como metáforas para destrinchar uma visão de protesto quanto às atitudes da política brasileira. Brincando até mesmo com a união do som de algumas palavras que, juntos, formam nomes de estruturas trigonométricas, um artifício muito bem empregado principalmente no verso “caos político destrói vários destinos, constrói muitos pepinos na hipótese que usa, a culpa é da hipotenusa”. Assim como em ‘Amor Faz Bem’, ‘Pega Fogo!’ e ‘Daisy Desirée (Catraca Sextavada)’, com ‘Trigonometria’ os irmãos repetiram o feito de compor uma música crítica abraçada por um ritmo de estrutura mínima, mas capaz de contagiar o ouvinte.
Misturando raga, chiptune e até mesmo um embrionário manguebeat, ‘Cabeça’ é uma canção de lirismo simples e direto. Fala da capacidade racional ao mesmo tempo em que aborda o senso personalista existente na sociedade atual, bem como um comportamento esnobe.
Sons agudos eletrônicos fazem um amanhecer na base do chiptune. A guitarra, junto ao som encorpado e sutilmente grave do baixo entregue pela programação, entrega certo tom de suspense na sonoridade introdutória de maneira a intrigar o ouvinte. A base do beat, por outro lado, vem com o swing tropical, latino e panamenho do reggaeton, o que acaba por proporcionar frescor e suavidade. Brincando com o som arrastado e acentuado das letras ‘s’ e ‘x’ pronunciado pelos baianos e, principalmente, pelos fluminenses, ‘Soteropolitana’ é quase como o relato vivido pelo povo soteropolitano com a chegada do final de semana, enredo esse que acaba por ser envolvido por um desembocar na sonoridade raga.
Grave e repentino como um som embrionário do susto e do medo. Com o sentimento de pavor devidamente coado, a melodia assume certo toque swingado que contrapõe ao encorpamento embriagante e nauseante do som trazido pela programação. A faixa-título é então abraçada por um lirismo de cunho unicamente reflexivo sobre a forma como as pessoas levam a vida de forma que são sempre apoiadas pela fé, pela simplicidade de uma conversa descontraída e mesmo pela falta de profundidade de pensamento. Além disso, mesmo que em um verso curto, a faixa-título chama atenção também para o desmatamento e desemboca em um refrão cuja melodia é de um ânimo estonteante que proporciona a ambientação de uma festa, uma sessão espiritualista que almeja a conscientização de atos e comportamentos que sejam simplesmente mais humanos.
Simplicidade melódica. Um minimalismo que se deleita principalmente nos gêneros latinos do raga e do reggaeton. Uma mistura que ainda proporciona a união de sonoridades do eletrobrega, do chiptune, do manguebeat, new wave, rock alternativo, avant-garde e post-grunge. Uma experimentação melódica que serve de trilha sonora para enredos reflexivos de cunho crítico, analítico e protestante. Isso é Mais Humano.
Como produto de estreia do duo soteropolitano Vitrolab, o álbum soa maduro, consciente e exala um sincronismo entre letra e ritmo que denota, a partir da autoprodução, um grau considerável de liberdade criativa e de química entre os integrantes que, inclusive, foi muito bem captada na sonoridade final obtida pela mixagem de André T. Trazendo críticas sociais que beiram o consumismo, o personalismo e a retomada dos conceitos de pureza e simplicidade, o disco ainda se deleita sobre visões de protesto contra a fome, a pobreza e a forma como a política nacional lida com os anseios sociais.
De todos os aspectos de Mais Humano, talvez o que chame mais atenção seja a arte de capa. Feita por Pedro Pepeu Oliveira, ela é direta em seu conceito que traduz sem ambiguidade o que o álbum quer passar. Apresentando um braço apoiado em um tocador de discos e pressionado pela agulha posicionada propositalmente na principal veia do membro, ela passa a ideia de transmissão e execução dos sentimentos e características que compõem o indivíduo. Uma perfeita alusão à necessidade de recobrar e disseminar o senso de humanidade na população já muito ferida pelos efeitos colaterais da falta de interação social ocasionada pela pandemia, que pode ter como exemplo a frieza como explicação da falta de sentimentalismo.
Lançado em 25 de março de 2022 de maneira independente, Mais Humano é um trabalho que chama atenção para questões político-sociais a partir de lirismos seriamente reflexivos e abraçados por uma melodia de DNA majoritariamente latino. Um disco que distrai, mas que deixa uma pulga atrás da orelha do ouvinte que não o deixará dormir antes que lhe seja dada uma liberdade incondicional para o pensar.
* Diego Pinheiro é jornalista, colabora, entre outros, com o Jornal O Prefácio e mantém um site próprio de críticas, por onde saiu originalmente este texto.