Atuante na cena baiana há alguns anos, a banda Toco Y Me Voy lança primeiro álbum depois de dois EPs trazendo seu rock mesclado a diversos ritmos.
Por Julli Rodrigues *
A banda baiana Toco Y Me Voy concretizou o desejo de expressar sua lírica “lúdico-combativa”, na definição do próprio conjunto, no álbum Musicavião, lançado no último mês de abril. O trabalho, terceiro da discografia, chegou a ser anunciado para 2018, época em que o grupo fez uma turnê pela Chapada Diamantina e cidades do interior da Bahia. No entanto, só chegou às plataformas de streaming cerca de cinco anos depois.
Musicalmente impecável, o disco mantém firme a marca da Toco Y Me Voy como um “laboratório” que mescla diferentes linguagens sonoras. Entretanto, o voo de Musicavião perde a rota toda vez que ensaia um discurso ativista em suas letras, devido à falta de profundidade da proposta.
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Com produção de Thiago Ribeiro, que também é o líder da banda – responsável por voz, guitarra, bandolim, baixo, kazoo e coro -, Musicavião tem sete faixas, sendo seis autorais, que unem o rock às influências de diversos gêneros. Por exemplo, a ótima “Toco Y Me Quedo”, assinada por Ribeiro em parceria com Andrés Cisilino, traz o acordeon de Daniel Neto em uma pegada bem próxima do tango, enquanto “Há de Se Ver” é pautada no balanço latino da cumbia. “Bicho Preso” traz uma criativa união do rock progressivo épico com ecos de samba-reggae. “É Lá Que Eu Vou” faz pensar no que aconteceria se um dia o Red Hot Chilli Peppers decidisse colocar uns compassos de samba em suas canções.
A faixa-título, “Musicavião”, é um blues envolvente que se destaca em meio à tracklist. Em 2019, ela ganhou o prêmio – merecido – de Melhor Arranjo no 17º Festival de Música da Educadora FM. Completam a lista de faixas “Uma Coisa Só”, que também ecoa latinidade, e a primeira canção de outro autor gravada pela Toco Y Me Voy: “Xenofobia”, do cantor e compositor baiano Val Macambira, ícone do forró e da música regional.
No material de divulgação do álbum, a banda destaca que “os arranjos de guitarra e bandolim se revelam mais ríspidos do que em álbuns anteriores”, e que há maior intensidade. De fato, a sonoridade é por vezes pesada, sombria, tingindo com tons de cinza até mesmo as canções mais dançantes e enérgicas. O movimento em direção à crueza é muito semelhante ao encontrado em Brutown, terceiro álbum de estúdio da banda sergipana The Baggios.
Turbulências líricas
O voo de Musicavião poderia ser suave e tranquilo, se não fossem as turbulências causadas pelo discurso “lúdico-combativo” citado no início do texto. No contexto da música atual, existem várias maneiras de se incluir temáticas de ativismo político e crítica social em canções.
Algumas soam mais sutis, outras mais pungentes; algumas parecem orgânicas, outras travam no ouvido por soarem gratuitas e rasas. Exemplos positivos de composições “engajadas” não faltam na produção musical baiana contemporânea. Basta ouvir “Trigonometria”, lançada em 2022 pela banda Vitrolab, com sua letra habilmente costurada – “Um momento / Por quê que esse esgoto vem depois do calçamento? / O rio tá lamacento e tá faltando leito no pronto-atendimento? / Que coisa! / A soma do quadrado dos capetas se iguala ao quadrado dos palhaços do planeta”.
Outros dois bons exemplos estão em “Que Tempo Louco” e “Justiça”, do álbum Tempestade (2021), do guitarrista e compositor Jotaerre, verdadeiros brados contra a violência policial, a fome e a injustiça social. Ou a irretocável “O Erro de Townshend”, lançada em 2019 pela banda de rock Tangolo Mangos, da qual é até difícil destacar um trecho só.
Em comum, as três músicas citadas têm a característica de dar nome aos bois, aos problemas reais vividos pela sociedade: a falta de alimento, a humilhação sofrida pelo povo, a “bala perdida com endereço certo”, o ônibus incendiado, a pobreza, a falta de consciência de classe. O discurso é construído com consistência, sem uso de clichês e figuras batidas.
Musicalmente impecável, o disco mantém firme a marca da Toco Y Me Voy como um “laboratório” que mescla diferentes linguagens sonoras.”
O que ocorre em Musicavião é justamente o contrário disso. Quase todas as músicas tentam, de alguma forma, soar combativas e engajadas, mas pecam ao se apoiarem – ainda que de leve – no grito clichê contra um inimigo invisível e metafórico. O discurso ultrapassado de “manipulação da mídia”, especificamente da TV, aparece em “Bicho Preso” – “o dinheiro manda em tudo / junto com a televisão / e o rebanho baixa a cabeça / até o dia da explosão” – e mais fortemente em “Há de Se Ver” – “comprimindo meus pensamentos / distorcendo minha visão / esfumaçando meu senso crítico / eles estão no poder (…) eles decidem por você / há de se ver além das coisas que eles deixam ver / há de se ver além da tela da novela da TV (…) há de se ver além da história que eles pintam pra você”.
Um comentário de comunicóloga: as teorias da comunicação já vêm refutando há mais de um século esse tipo de visão sobre os chamados meios de massa, mas ainda assim há quem prefira ficar dando voltas em torno da teoria hipodérmica – que estabelece que o estímulo da mídia é recebido pelo indivíduo sem encontrar resistência – ou da hipótese do cultivo – que propõe que a TV molda a percepção de seu espectador sobre a realidade. Em comum, essas duas teorias trazem o total desprezo pelo papel ativo do receptor e pelos outros mecanismos sociais que influenciam a forma como uma mensagem vai chegar até ele. Logo, o discurso de que “a mídia manipula”, usado em pleno 2023, soa datado e raso.
Também é problemática a premissa de “Uma Coisa Só”, cuja letra tem a pretensão de ser um grito de “comunhão entre os povos”: se somos todos uma coisa só, o preconceito não faz sentido, afinal “mi corazón es español e minha bisa preta”, a globalização aproximou todos nós. Parece um tanto inadequado propor uma visão tão próxima da ideia de “democracia racial”, sem grandes problematizações, justamente nos tempos de hoje, quando os debates sobre racismo, xenofobia, privilégios sociais, opressões e lugar de fala avançam cada vez mais. Será que é tudo uma coisa só mesmo?
Em meio a todos esses pontos, fica a sensação de que a rota de Musicavião não foi muito bem calculada. Por várias vezes ao longo do disco, vem o pensamento de que ele seria maravilhoso se fosse um trabalho instrumental, ou se a Toco Y Me Voy tivesse se preocupado mais com a música e com o lirismo, em vez de semear palavras de ordem sem muita consistência e profundidade. O resultado dessa tentativa de “arte engajada” é um voo com severa perda de altitude, que se sustenta no ar apenas pela perícia musical de seus pilotos.
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* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter de rádio na Rede Bahia. Produz conteúdo sobre música no Instagram @diletantejulli e no blog Ouvindo Coisas. Mais detalhes podem ser consultados aqui.