Em ‘Aleluia, Cascadura mostra as belezas e tristezas de Salvador sob seu ponto de vista num álbum antológico.
Depois do aclamado ‘Bogary’, o Cascadura tinha como desafio superar o álbum anterior que os havia elevado a um outro patamar da música brasileira. Para Fábio Cascadura o desafio se fez ainda maior, segundo ele mesmo, quando ouviu os discos ‘Cha Cha Chá’, do Retrofoguetes, e ‘Frascos, Comprimidos e Compressas’, de Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta. Duas preciosidades da música baiana lançadas por contemporâneos seus em 2009. Fábio se sentiu na obrigação de prestar sua colaboração para aquele novo momento da música da Bahia, que deixava as amarras de lado e tomava de volta a possibilidade de mexer com os ritmos, a realidade, as sonoridades da grande Salvador, sem deixar de lado sua própria personalidade. A resposta ao desafio aparece agora com ‘Aleluia’, quinto álbum da banda que está sendo lançado pelo selo Garimpo, primeiro em formato digital e, em agosto, no formato CD.
CONFIRA O FAIXA A FAIXA COM FÁBIO CASCADURA COMENTANDO AS 22 MÚSICAS DE “ALELUIA”
Um álbum ousado, ainda no mercado atual, não apenas por ser duplo e conter 22 músicas, algo difícil de se ver no Brasil, mas também por trazer um conceito bem definido, algo ainda mais raro hoje em dia. E é esse conceito que sustenta a pretensão de fazer um álbum com essa envergadura, repleto de convidados e que quer dizer muito mais do que apenas aparentam as músicas. Uma obra criada como fruto de uma vivência de Fábio com Salvador, trazendo seus problemas e suas belezas. Segundo ele, feito em Salvador e pra Salvador, fruto de suas andanças pelos diversos cantos e ruas da cidade. As cuidadosas letras trazem pedaços da história da cidade, muitas vezes esquecidos, bem como de personagens, posturas, tristezas, características peculiares e abandonos. Uma relação complicada para qualquer morador da cidade, que a banda tenta contar através das 22 faixas.
O disco repetiu a fórmula do anterior, ‘Bogary’, com arranjos coletivos, produção de andré t, co-produção de Jô Estrada e a banda reduzida a seu fundador, Fábio Cascadura, nos vocais, composições, letras, baixo, violões… e Thiago Trad, na bateria, vibrafone, tímpanos e algumas percussões. O time de convidados é riquíssimo, passando por um apanhado de boa parte do rock baiano (Pitty, Mauro Pithon, Ronei Jorge, Jajá Cardoso e Jorge Solovera), importantes músicos da Bahia (Letieres Leite, Gabi Guedes, e a própria Orkestra Rumpilezz, Paulo Rios Filho e Du Txai), além de convidados da música nacional (Beto Bruno, Siba, Móveis Coloniais de Acaju e Nando Reis). Fábio compôs as 22 músicas, sendo que algumas poucas em parceria, com Candido Sotto (“Aleluia”), Ronei Jorge (“Dava pra Ver”), Beto Bruno (“Sonho de Garoto”), Nando Reis (“Nunca Imaginei”) e com os parceiros envolvidos no disco, Thiago Trad, andré t e Jô Estrada (“Cantem: Aleluia”).
Em “Aleluia”, o Cascadura decidiu ir além do rock e trouxe pra si um discurso e um conceito que era evidente que respingaria na música. Sabendo o que queriam, mas sem saber o que viria, Fábio, Thiago, andré e Jô mergulharam em possibilidades. Uma delas, a mais estranha e ousada para a banda, tinha como ponto de partida os toques de candomblé. A rica e cheia de simbologias percussão dos terreiros deu origem a um punhado das canções do disco. O mais impressionante é como não soou como algo estranho. A combinação rock e candomblé, guitarras e percussão casaram tão bem que nem parece algo totalmente novo, mas como algo que estava ali tão claro, só esperando alguém fazer daquela forma.
“To Your Head” é um desses encontros, percussão e sopro da Orkestra Rumpilezz, aliado a um mesmo riff de guitarra repetido durante toda música. “Lá Ele!” aparenta ser uma canção mais com a cara do Cascadura de sempre, mas com uma percussão servindo como base e um baixão dando as coordenadas. Talvez a mais radical nessa junção seja “Uma Lenda do Fogo”, uma canção tipicamente roqueira que ganha contornos marcantes e ganha força com a presença percussiva. Ou “O Cordeiro”, que assim como as duas anteriores traz os atabaques de Gabi Guedes da Rumpilezz marcando o ritmo, com guitarras rasgadas atravessando a canção enquanto Fábio entoa sua letra cortante. Não poderia ser de outra maneira que isso tudo viria à tona senão em um disco falando sobre Salvador.
Se essa junção de sons soa natural, não poderia ser diferente quando o Cascadura fosse fazer rock mais tradicional. “O Delator” e “A Mulher de Roxo” são alguns exemplos, certeiras, urgentes e mostrando a banda com a velha forma em criar hits aliando riffs e refrões. As canções mais suaves também aparecem, como em “Chorosa”, à base de piano; em “Os Reis Católicos”, quase toda a base de violão; na delicada “Simples como a Vida”; ou ainda na parceira com Nando Reis “Nunca Imaginei”, que traz o lado mais doce do disco. Em “O Tempo Pode Virar” e “O Sonho de Garoto” há algo de Beatles e Beach Boys e daquele rock melódico infalível. As faixas mais normais também mantêm o nível alto, caso de “O Rei do Olhar” ou “Resumindo”, com guitarras, baixo, bateria e a voz de Fábio funcionando como sempre.
Há ainda os momentos mais provocadores, como o blues experimental “Um Engolindo o Outro”, com acento não convencional e uso de um berimbau; a meio erudita meio pop “A Verdadeira” e a meio moura meio nordestina “Columbo”. Outro destaque é “Soteropolitana”, canção típica do Cascadura, que vai crescendo até terminar de forma natural num samba-reggae. Elementos que dão uma nova roupagem às composições de Fábio, das percussões aos sopros dos Móveis Coloniais de Acaju, que abrem o disco na faixa que o batiza, “Aleluia”. O triunfo do Cascadura foi dar a tudo isso uma unidade, seguindo um conceito bem definindo e não tão fácil. Um verdadeiro tratado sobre Salvador, que pode ser absorvido de diversas formas e em níveis diversos de interpretação. Um daqueles álbuns para ser ouvido e absorvido aos poucos, e ir descobrindo detalhes e significados.
Revelando uma Salvador de fora dos cartões postais, como pouco se fez até então com a tão cantada capital baiana, o Cascadura traz os ritmos afro, a negritude, a baianidade, mas também o preconceito racial, a realidade dos cordeiros, o machismo, os personagens quase ocultos e os não tanto, o sofrimento de se viver em Salvador. Uma ode à cidade feito num dos momentos em que ela atravessa uma fase de crise, com problemas expostos, sem ainda uma cicatriz. Mas é o próprio Fábio quem dá uma luz em “O Tempo Pode Virar”: “já consumimos muito tempo nos testando, nos negando algum valor/ já crescemos o quanto podemos e sabemos o que é melhor/ ou talvez não/ Já que chegamos aqui, restamos caminhar/ pra onde eu não sei não/ não há o ponto final”.
Se parece estranho uma das bandas mais tradicionais do rock baiano chegar aos seus 20 anos inserindo tantos elementos diferentes do que costumava, isso só demonstra um desapego ao que já estava consolidado. Um novo disco repetindo o que deu certo no anterior, com belas e inspiradas canções, guitarras criativas, refrões melódicos e ótimas ideias – o que já não é simples de fazer -, seria o caminho mais fácil. E se o desafio era justamente superar o ‘Bogary’, que se encaixava neste universo, com “Aleluia”, um outro lado da praia foi alcançado. A vivência em Salvador pode provocar diversas reações, no Cascadura a consequência foi uma homenagem sincera e tocante. Uma proposta que coloca a banda num novo patamar.