Depois de quatro anos de seu último disco, ‘Divina Graça’, o cantor e compositor baiano Bruno Capinan apresenta seu mais novo trabalho, ‘Real’, quarto álbum da carreira. Munido de uma sonoridade que mescla pop e MPB, ele mergulha nos tempos atuais de relacionamentos fluídos e realidades virtuais. Julli Rodrigues se aprofundou na obra e nos dá suas impressões.
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Por Julli Rodrigues*
Depois de revisitar as raízes afro-baianas no aclamado disco “Divina Graça”, de 2016, o cantor e compositor baiano Bruno Capinan deita sobre uma cama de cordas e beats para refletir sobre as realidades fabricadas e a modernidade líquida. Em ‘Real’, quarto trabalho da carreira, o artista radicado em Toronto, no Canadá, aborda as diversas faces dos relacionamentos em tempos de aplicativos, algoritmos, filtros e máximas como “antes de beijar, pergunte o signo”. Para além desse sentido estrito, no entanto, as doze faixas do álbum compõem um contundente ensaio sobre a existência, em tempos nos quais a linha entre a verdade e ilusão está tão borrada.
Lançado em julho de 2019, ‘Real’ é produzido pelo próprio Capinan em parceria com Mark Lawson, engenheiro de som do grupo indie Arcade Fire, e foi mixado em equipamentos analógicos. Todas as composições são autorais, sendo algumas assinadas com nomes como Ubunto, Philippe Cohen Salal, Bem Gil e Domenico Lancellotti – estes dois últimos, parceiros do artista desde o trabalho anterior. Há, ainda, um poema do português Mário de Sá-Carneiro (“O Pajem”) musicado pelo cantor e compositor. A percussionista Lan Lanh e os cantores Rubel e Mãeana fazem participações especiais.
Uma grande contribuição para a sonoridade do álbum é dada pelo quarteto de cordas composto por Mariel González (violoncelo), Tanya Charles (violino), Bijan Sepanji (violino) e Alyssa Delbaere-Sawchuck (viola). Em entrevista ao site Scream & Yell, Capinan afirmou que a intenção era colocar apenas mulheres nesta formação, mas a presença de um homem não tornou o grupo menos diverso: “Tem uma mexicana, outra é de descendência indígena daqui (do Canadá), uma negra, e um dos violinistas é iraniano”. Sob o comando do arranjador Graham Campbell, o quarteto interage bem com as programações eletrônicas, gerando um resultado sonoro envolvente. ‘Real’ é definido por Capinan como um disco “pop-mpbista”, mas nota-se, também, a influência rítmica da percussão baiana e do batidão carioca.
Relacionamentos líquidos
Entre os (diversos) pontos altos do álbum, vale citar “Escorpião” (Bruno Capinan), que flerta com o funk, embalada por programações, cordas e beat-box. Logo em seguida, “Algoritmo” (Capinan) revisita o groove arrastado, com participação especial de Lan Lanh. Nos versos dessa faixa, há uma verdadeira síntese da construção de relações em tempos de Tinder, Scruff e outros aplicativos de relacionamento. Na música seguinte, “Real Agora” (Capinan/Ubunto), essa temática é aprofundada de modo mais contundente.
Em um contexto de “relacionamentos líquidos”, para usar o conceito proposto por Zygmunt Bauman, uma queixa comum dos usuários de aplicativos é o fato de que, muitas vezes, não há um interesse genuíno pela pessoa que está do outro lado da tela, e sim a busca por satisfazer um desejo carnal. O próprio artista conta, na entrevista ao Scream & Yell, que, enquanto gay e “pessoa que usa Grindr, Scruff ou Hornet”, começou a usar os aplicativos “para fazer um estudo do nosso tempo, do nosso agora”. Essa situação de liquidez e solidão acompanhada é traduzida de forma cirúrgica nos versos “Antes que você venha / meter / preciso saber de você um pouco (…) um pouco / na solidão da vida / é tanto que talvez / eu queira dividir com você”.
As intenções pop de Capinan se mostram mais claramente, sob diferentes ângulos, em outras faixas do álbum. Se em “Momento” (Capinan/Philippe Colen Solal) há uma vibe de AOR oitentista, “Tropa” (Capinan/Ubunto) é claramente funkeira. Já em “Pessoa” (Capinan/Domenico Lancellotti), que versa sobre a construção de imagens pessoais nem sempre correspondentes à realidade, é a vez do electropop e do dream pop, em um diálogo sonoro com o trabalho de artistas como a cantora neozelandesa Lorde. Por sinal, é possível estabelecer uma ponte entre ‘Real’ e o disco mais recente da artista, ‘Melodrama’, já que em ambos existe a temática da solidão e da liquidez contemporânea.
MPB pop
A delicadeza também tem seu espaço: seja na melancólica angústia do amor que não deu certo e mesmo assim permanece, cantada em “Do Avesso” (Capinan), com participação de Mãeana; ou na levada folk de “Love’s Will” (Capinan/Bem Gil), interpretada por Capinan e Rubel, com jeito de “canto de comunhão”. Já “Um Flerte Socialista” (Capinan) é um dos poucos pontos baixos de “Real”. Embora tenha a boa intenção de versar sobre um desejo
hesitante em vias de ser (novamente) realizado, o resultado lírico e sonoro não sobressai.
No geral, dá para dizer que Bruno Capinan cumpre bem o objetivo de fazer um disco “pop-mpbista”, se apropriando das mais diversas vertentes de ambos os gêneros. ‘Real’ funciona como um fotograma preciso de um tempo de fluidez nos relacionamentos, nos paradigmas e nas noções de verdadeiro e fake. Como o próprio artista conta no material de divulgação, sua intenção – muito bem executada – foi propor uma dança à beira do precipício, “em meio a barragens rompendo, museus em chamas, presidentes eleitos com reforço de algoritmos e a sensação de vulnerabilidade coletiva”. Então, dancemos.
Ouça ‘Real’:
*Julli Rodrigues é jornalista formada pela UFBA. Atualmente, trabalha na Rádio Metrópole FM como repórter. Apresenta a série mensal “A Música no Tempo” no Especial das Seis da Educadora FM, sobre o contexto da MPB entre os anos 60 e 80, e escreve análises sobre música e áudio no blog Ouvindo Coisas.