Em seu sexto álbum, o baiano radicado no Canadá aponta para o futuro num trabalho bem resolvido, vibrante e solar.
Por Julli Rodrigues*
É possível afirmar que o novo álbum do cantor e compositor baiano Bruno Capinan, Tara Rara, seja um ponto de avanço e de retorno na discografia do artista. De um lado, ele consegue dialogar com seus trabalhos anteriores, resgatando temáticas e sonoridades já exploradas em ambos. Além disso, também existe um retorno aos afetos e à baianidade do artista, que define o álbum como “um disco Bahia mística de uma gay nostálgica”. Por outro lado, no entanto, Tara Rara avança ao aprofundar e expandir aquilo que já marca presença na obra de Capinan, além de abrir novas parcerias e trazer um olhar bem resolvido para esse passado. O resultado é um disco solar, comunicativo, que aponta para o futuro.
Tara Rara é produzido por Vivian Kuczynski, jovem artista de 19 anos que já tem no currículo álbuns como Imaculada, de Alice Caymmi, lançado em 2021. A ficha artística inclui nomes como Marcelo Costa e Bem Gil, além do músico australiano Adrian Astro Perger e uma orquestra de musicistas LGBTQIA+ – em um movimento semelhante ao feito em Real (2019), quando Capinan tinha a intenção de trabalhar com um quarteto de cordas inteiramente feminino. As onze faixas são autorais, sendo uma delas – “Mafuá” – assinada com Luisão Pereira, parceiro já presente nos discos Tudo Está Dito (2014) e Divina Graça (2017). Todo o processo de gravação foi feito entre Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Toronto (Canadá) e Melbourne (Austrália).
O material de divulgação de Tara Rara informa que o disco nasceu com o intuito de retratar “os sons dos tambores e batuques de corpos negros e o destrutivo passado familiar do cantor baiano”. Esse contexto tão sombrio, no entanto, não chega a se refletir no álbum, que é estruturado sobre as bases do afro-samba, da bossa nova e do pop funk. Sonoridades negras se encontram para criar o clima de um álbum sobre mar, lugar, festa e desejo. O lugar é a Bahia, onipresentemente, mas também o Brasil. Uma territorialidade que vai além dos clichês e da velha “saudade de casa” que todo “retirante cultural da seca do seu lugar”, como canta Pitty em “Bahia Blues”, se sente no direito de expressar.
O Brasil cantado por Capinan tem muito mais do que palmeiras, sabiás e “coqueiros que dão coco”, embora Ary Barroso seja uma referência declarada. Exemplo disso é o samba-reggae “Ode Ao Povo Brasileiro”, que evoca heróis (principalmente) negros e indígenas de todos os tempos e lugares. Cabem nesse caldeirão inspirações como Marielle Franco, Elza Soares, Itamar Assumpção, Pixinguinha, Jorge Amado, Lélia Gonzalez e Dorival Caymmi.
O poeta da Bahia que tanto cantou o mar, por sinal, parece ter influenciado diretamente a faixa seguinte, “Deuses Deusas”, com seu balanço melancólico e letra que fala de mar e ancestralidade. Da mesma forma, é impossível ouvir “Bahia Brasil” e não pensar em Caymmi e Barroso. A faixa que encerra Tara Rara; tem um refrão-chiclete, simples e comunicativo: “segura na minha mão e confia / a gente tá na Bahia”. Não é preciso dizer muito além disso, afinal.
Vale dizer que a baianidade de Capinan também aparece na forma de celebração. A já citada “Mafuá”, em parceria com Luisão Pereira, faz o irresistível convite para uma festa afro-brasileira, em meio a batuques ancestrais funkeados e metais marcantes. Uma festa na Bahia, na orla de Salvador. Uma festa no mar – olha o mar aí de novo -, com Damião e seu Zé, com as bênçãos dos orixás.
O romantismo ganha espaço em algumas canções do álbum, com destaque para o adocicado samba-reggae-bossa-nova “Meu Preto”, pontuado por orquestrações de muito requinte. Já a faixa-título sobressai pela vibe samba-jazz sessentista e por um detalhe que pode parecer bobo, mas serve como mais uma pequena prova de que há várias formas de fugir do óbvio: a construção da letra sugere que os termos do título podem ser citados a qualquer momento, mas não são. Falando em sugestão, “Tara Rara” pode ser ouvida coladinha com “Você Não Presta”, de Mallu Magalhães, que bebe da mesma fonte em relação à sonoridade.
Mas nem tudo é doçura, romantismo, bossa nova e afro-samba neste álbum de Capinan. Temas como relacionamentos líquidos, “pegação” e desejo, tão presentes no álbum Real (2019), são revisitados com a mesma pegada pop funk e a mesma linguagem direta, em duas faixas. Pontuada por gemidos de prazer, “Na Moral” manda o papo reto: “você quis me dar tudo e agora me vem dizer que cansou bem depois de você sentar”. Já “Qualquer Lugar” guarda algumas semelhanças com “Real Agora”, faixa de 2019.
Em ambas as canções, o eu-lírico expressa o desejo de expandir o relacionamento para além da satisfação carnal, mas enquanto em “Real Agora” essa vontade é exposta de forma angustiada – “antes que você venha meter, preciso saber de você um pouco (…) um pouco, na solidão da vida, é tanto que talvez eu queira dividir com você” -, em “Qualquer Lugar” ela já parece bem resolvida – “onde a gente possa estar um por dentro do outro, oriundo um do outro (…) e se o tempo virar, meu amor, dá-se um jeito de eu morar nos teus braços, vai que de vez eu possa ficar depois que a poeira assentar”. Se antes o discurso era “preciso saber de você pra me sentir menos sozinho nesse deserto de almas”, agora ele vem no tom de “quero estar com você e curtir, e se rolar algo mais, é ainda melhor”. Um eu-lírico com a terapia em dia.
“Bem resolvido” é uma ótima expressão para definir o vibrante Tara Rara. Celebrado pela imprensa especializada canadense, com menções em sites como Exclaim! e V13, o álbum apara as arestas do seu antecessor, Leão Alado Sem Juba (2020), e abandona a introspecção e a melancolia, focando numa abordagem mais solar, uma celebração nostálgica das raízes de Capinan enquanto baiano, negro, brasileiro. As canções não trazem qualquer resquício do background sombrio que deu o pontapé inicial para que o disco nascesse. Afinal, como explica o próprio artista no material de divulgação, a “Tara” do título também é a divindade budista que liberta as almas do sofrimento. Da dor ao prazer, do breu à luminosidade, Bruno Capinan expurga dores e descobre um novo caminho – que passa, invariavelmente, pela Bahia.
* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter de rádio na Rede Bahia. Produz
conteúdo sobre música no Instagram @diletantejulli e no blog Ouvindo Coisas.