
por Pedro Antunes de Paula
Não ter tido a oportunidade de escrever sobre “tds Bem Global”, disco de estreia de dadá Joãozinho, artista de Niterói, é lástima. Considero o disco do artista – que também faz parte do grupo ROSABEGE – um dos melhores, se não o melhor trabalho brasileiro de 2023, seu ano de lançamento.
Assim o declaro, por uma série de motivos: o estranhamento que tive ao ouvir pela primeira vez, a incapacidade de classificá-lo em um rótulo estático sem cair em reducionismos bobos, além de sua abordagem experimental à gêneros tradicionais somado à um tratamento vocal especialmente diferente. É, sobretudo, brasileiro e urbano.
O interesse, portanto, em se debruçar sobre um novo trabalho é prioridade de assunto. Isso pode se dar aqui com a sequência de sua estreia chamada “1997”: um EP de 5 faixas no qual o artista discorre mais de amor, mais de família, legado e memória. Apresentado como uma continuação natural aos temas e estéticas permeadas no disco de estreia, “1997” acaba por trazer complemento ao material produzido em 2023 com sobras e desdobramentos de sua pesquisa sonora.

Se em seu disco de estreia Joãozinho reflete sobre a migração e as mudanças que um tempo novo traz à sua (e nossa) contemporaneidade, muito da memória se é debruçado neste novo EP. Com olhar atento à sua própria história, o artista já posiciona a questão com a escolha do título: “1997”, o ano de seu nascimento e marca de identidade maior.
A investida em uma carreira solo implica em estabelecer alguma medida de intimidade com o que se está propondo, e Joãozinho não se furta em apresentar suas crises ao ouvinte. Em “tds Bem Global” as relações humanas, diante das implicações que a contemporaneidade digital impõe, são discutidas enquanto passeia entre os mais diversos gêneros que permeiam a música brasileira. Os processamentos eletrônicos dão liga à sua diversidade além de uma performance vocal muito específica do artista, o que o faz encostar as paredes do pop mas sempre causar estranhamentos interessantes nessas relações.
Em “1997”, dadá reitera temas já apresentados em seu trabalho de estreia, o que traz relances de faixas como “Habitual”, “Veja”, “Minha Droga”, mas com um olhar mais comprometido ao amor e desejo. Um exemplo é o que apresenta em “100 anos” – “Ela faz eu pensar que eu sou o melhor do mundo nisso / O amor é uma prática / E nós tamo dois viciados” – faixa que foi gravada em take único.
Um recorte próximo à ela é o que propõe em “Olha pra Mim”, parceria com a banda Raça. A faixa traz um recorte mais voltado à uma espécie de amor confessional – “Eu só quero que você me queira / Olha pra mim” -, além de sonoramente se aproximar à sua pesquisa no rock alternativo. Para dadá, a faixa parece ter alcançado um caminho ainda não traçado: “Eu nunca tinha feito nada daquela forma, naquele ritmo, mas ao mesmo tempo essa música me trouxe uma sensação de nostalgia, conectando-me a várias tradições musicais que me formaram dentro de casa, como a música pop e a música brasileira”, diz em release para a imprensa.
A dinâmica entre gêneros não é novidade em sua obra, já que experimenta a mistura entre samba, reggae, rock, hip-hop e outra série de expressões em uma perspectiva urbana. É o que apresenta em “As Coisas”, por exemplo, que reintroduz a ideia de amor mas de modo mais sóbrio – “As coisas são como estavam antes de eu e você”. Ela se aproxima mais diretamente à experimentação com reggae e eletrônico realizada em “tds Bem Global”, o que é explicado pela faixa ter sido composta nas sessões do próprio álbum, mas ter ficado de fora do corte final.

Entretanto, é com “Subindo em Árvore (De Qualquer Forma é Grande)” e “Landa” que o artista apresenta uma nova face de seu trabalho, dessa vez se relacionando à uma perspectiva muito brasileira do violão, só que mais livre, tortuosa e desconstruída.
A primeira “é um retrato autêntico da minha música, nesse projeto em que quis tirar qualquer filtro, do tema à forma”, diz o artista. Ela narra uma série de imagens, e situações cotidianas amarradas ao seu fim pela figura de uma mulher, o que amarra a questão do desejo já apresentada nas faixas anteriores com vocal vacilante e cadenciado. Ela ilustra muito bem o estilo de escrita e vocal do artista, em que a verborragia é combinada em versos quase falados, por vezes tomados por apenas uma ou duas notas que oscilam em um tom confessional.
É perceptível uma proposta bem livre de dadá ao que se entende por estrutura da canção nessas faixas, algo que já havia sido trabalho em sua estreia mas com a intervenção eletrônica guiando a experimentação de forma mais incisiva. O uso do violão aqui como elemento composicional introduz uma nova postura ao experimento.
Mas parece ser em “Landa” existir o coração desse novo trabalho, faixa que tematicamente se aproxima à “Pai e Mãe”, obra de “tds Bem Global”, mas que desenvolve de modo mais substancial a memória, identidade, tradição e legado. Mantendo o tom confessional de algumas de suas faixas, dadá narra a sua relação familiar com violão mântrico. O artista coloca em versos “Salve os meus primos primas tios e tias, todos que Yolanda tocou” e finaliza com “nos juntamos no fogo dela vela”, referenciando o aspecto ritualístico e religioso que mantém papel importante no seu exercício à memória.
Com esse trabalho, o artista de Niterói demonstra a potencialidade que seu trabalho possui ao desenvolver questões iniciadas em seu disco de estreia com um olhar muito específico à canção, que, descompassada e tortuosa, constrói seu caminho único para o que nos apresenta como a sua música brasileira. Ainda bem que, de agora em diante, ela também é nossa.
