Verão em Salvador começando repleto de shows, agenda cheia, muitos artistas de fora do estado passando por aqui, projetos começando e as bandas e artistas locais também tocando bastante. Difícil ver tudo e mais ainda dar conta de tudo, mas vamos tentando. Neste começo de ano um resumo do que já vimos.
Wado – Portela Café
Com seis discos nas costas e uma carreira artisticamente já consolidada (apesar de economicamente ainda instável), Wado apresentou no Portela Café na última sexta-feira (20) um daqueles shows que faz qualquer um pensar porque as pessoas não estão ouvindo este cara como deveriam. Uma música autoral e com forte personalidade, ao mesmo tempo em que soa universal, assimilável, passível de tocar em qualquer rádio do país. No palco, ele se apresenta à vontade, como se fosse um artista local, como se todo dia se tocasse na cidade, tanto pela forma tranquila como leva o show e recebe convidados, quanto pela receptividade e sintonia com o público de Salvador.
Tudo bem que a casa não estava lotada como merecia. Mas as cerca de 200 pessoas que estiveram no local puderam ver um artista com uma trajetória bastante relevante e que tem o que dizer e mostrar. Em quase duas horas de show, o alagoano voltou duas vezes ao palco e parecia encantado ao ver o público cantar em coro praticamente todas as músicas. E não foram poucas. Mesmo sendo lançamento do novo disco ‘Samba 808’, Wado, com uma banda em cima, desfilou seu rico repertório que trouxe a tona desde canções do já longínquo disco de estreia, ‘Manifesto da Arte Periférica’, de 2001, até as mais recentes. E ainda pedia ao público para escolher músicas.
Não faltaram as belas canções, mais lentas e românticas, como Pavão Macaco, Melhor, Frágil, esta linda só na guitarra no final, entre outras. As mais pra frente e dançantes, como Tarja Preta, de ‘Cinema Auditivo’, de 2002, Grande Poder e Se vacilar o Jacaré Abraça, do ‘Farsa do Samba Nublado’, de 2004; Ontem Eu Sambei, do ‘Manifesto da Arte Periférica’, de 2001. Um passeio pelo ritmos africanos, baianos e negros, com Jejum / Cavaleiro de Aruanda, Martelo de Ogum e Cordão de Isolamento, do ‘Atlântico Negro’, de 2009. Já perto do fim anunciou o fim das baladas e o início da sessão pancadão, injetou Rap Guerra no Iraque, Teta e Reforma Agrária do Ar, flertes com ritmos populares do terceiro mundo, como gosta de afirmar, em especial o funk carioca. Acerto em cheio, mostrando como poucos que o encontro destes mundos com uma MPB mais tradicional não precisa soar como gringo fazendo samba.
Se a proposta de incluir convidados para fazer participações no show foi para ampliar as possibilidades da apresentação, pelo resultado se revelou desnecessário. Com exceção de Teago Oliveira, da Maglore, que fez muito bem o lugar de Marcelo Camelo na música Com a ponta dos dedos do último disco, as outras participações foram mais uma presença charmosa de figuras do cenário musical baiano do que colaborações efetivas para as músicas. Mesmo que Fábio Cascadura, em Fortalece Aí, Luisão Pereira, em Tarja Preta, e Fabinho, do Radiola, em Se vacilar o Jacaré Abraça, tenham suas carreiras com indiscutíveis qualidades, a sensação é que Wado imprimiria melhor sozinho a sensabilidade que as músicas pediam.Isso valeu mais ainda para as músicas de ‘Samba 808’ que, ao vivo, sem as grandes participações presentes no disco, ganharam mais vitalidade, força e mostram como o talento de Wado como compositor e cantor é especial. As belas Si Próprio e Surdos de Escola de Samba renderam momentos especiais, com público e Wado cantando juntos e emocionados, e comprovam como é o próprio Wado quem melhor sabe interpretar suas canções.
Com uma boa sonorização da casa, Wado e banda mostraram um repertório de boas canções que muitas vezes ganharam versões diferenciadas. Cozinha em ponto de bala, um guitarrista que se não buscava os holofotes, conseguia passar pelas diferentes sonoridades sem titubear, e um tecladista que, de certa forma, conduzia a sonoridade dando novas roupagens aos arranjos. Com a já longa trajetória nos palcos, Wado é ciente de suas limitações. Compositor de mão cheia, cantor de recursos limitados,faz valer a forma com que imprime a interpretação de suas próprias músicas e se entrega ao cantar.
O alagoano-catarinense no palco comprova, como vem mostrando em seus discos, ser um cantor e compositor rico de referências, que valoriza a diversidade da música brasileira, sem soar como um aglutinador de causas ou um simples para raios eclético e sem critério. Sinteniza a música brasileira e transforma canções em pequenos hinos pessoais, que trafegam da emoção ao êxtase. O show é uma festa profana da música brasileira contemporânea, no qual se encontram ritmos, poesia, batidas periféricas, lirismo, modernidade, samba, saudade, funk e um trabalho autenticamente autoral. As lindas baladas, os sambinhas, o pé nos morros cariocas poderiam e deveriam estar por ai, sendo ouvidos em grandes festivais, nas rádios e TVs e pelos mais diversos perfis de público.
Manuela Rodrigues e Silvia Machete – Música no Cinema
Na estreia do projeto Musica no Cinema, no espaço cultural Cine Cena Unijorge, no Shopping Itaigara, um pequeno cinema que recebe outras programações culturais, duas cantoras dividiram as atenções: a baiana Manuela Rodrigues e a carioca Silvia Machete. No show, Manuela apresentou seu disco lançado em 2011, ‘Uma Outra Qualquer por ai’, revelando, para quem não conhecia, uma cantora com diversos atributos. Compositora de mão cheia, no palco ela mantém o nível de interpretação do disco com uma voz segura que navega por diversos caminhos com a mesma desenvoltura, e vai além, dosando um bom humor fino e inteligente com uma simpatia escancarada no sorriso, que não se esconde atrás da clara timidez. Em músicas que variam de uma MPB mais clássica, indo pra o rock, o samba e flertando em momentos com a vanguarda paulistana, Manuela, que já havia passado bem no teste do segundo disco, mostra um longo caminho à frente no palco, embora precise circular e tocar mais. Destaque para composições próprias como Vende-se um Poema, Doce de Limão, Profissional Liberal, além da versão de Tô, de Tom Zé, e a reinvenção de Berimbau, do Olodum.
Se Manuela decidiu levar o mesmo show que vem apresentando, Silvia Machete preferiu fazer um especial para o evento. Como ela mesmo disse, dentro da caixa preta as coisas são diferentes e ela programou uma apresentação que mesclava músicas de seus três álbuns com temas e trilhas sonoras de filmes. Com o assumido amor à música norte-americana, cantou desde o tema d’A Noviça Rebelde a Nancy Sinatra, com a sempre ótima ‘Bang Bang (My Baby Shot Me Down)’, de Kill Bill. Mandou ainda música de Rita Lee, mas foi com o repertório próprio que mais ganhou o público. Aqui vale lembrar também de Manuela, se com a baiana o humor é mais bem colocado e aparece especialmente nas letras, com Silvia Machete ele é escancarado, quase tão importante quanto a música. E com ela, o humor está presente na forma como se relaciona com o público, seja deixando um espectador totalmente sem graça para cantar uma música, convocando o público para comprar seu CD, dando aula de inglês, seja pela forma como interpreta as músicas, mas principalmente pelo lado performático circense que leva ao palco. Tem a já famosa sequência de bambolê, quando ela usa o brinquedo e acende um cigarro de ervas e solta bolinhas de sabão. Cantora com bons recursos vocais e um repertório e performance diferenciados, especialmente para cantoras brasileiras, Machete mostra no palco um sopro de criatividade, mas devendo apenas estar atenta para não cair no lenga lenga de piadinhas e gracinhas excessivas que acomete quem começa a fazer humor por aqui.
E a proposta dos shows acontecerem em cima do palco do cinema com projeções na tela grande, a cargo do VJ Gabiru, funcionou muito bem, não só oferecendo um cenário bonito, mas criando uma ambientação diferente às apresentações. O projeto Música no Cinema continua nos dias 06 e 07 de fevereiro com a banda Dois em Um e a cantora Tiê.
Fotos: Lucas Azevedo (Wado) e Vinicius Xavier (Manuela Rodrigues e Silvia Machete)