Outro dos mestres de nossa música que completam oito décadas, Caetano Veloso segue produzindo, criando, compondo, lançando disco e fazendo shows, sem perder a importância como artista e pensador. Para celebrar seus 80 anos, assim como fizemos com Gilberto Gil, reunimos sua longa discografia numa análise de seus 29 álbuns de estúdio, uma trilha sonora e alguns dos principais registros ao vivo. Nesse apanhado, priorizamos os álbuns de estúdio, mesmo aqueles não solo. Dos 19 álbuns ao vivo, focamos nos mais relevantes ou com carga de ineditismo. Por falar em números, Caetano teve 718 músicas gravadas e 4.114 versões catalogadas. Seus maiores parceiros são Gilberto Gil, com 17 composições juntos, e Milton Nascimento, com 9, seguido de Wally Salomão, com 8. Para esse trabalho de análise da discografia, convidamos um time de jornalistas, músicos e escritores para falar da importância e das características de cada um desses discos.
Domingo (com Gal Costa) (1967)
Disco de estreia tanto de Gal quanto de Caetano, o álbum colaborativo Domingo foi a solução encontrada pra lançar a carreira dos dois músicos para o público nacional, já que à época a Philips não poderia gravar um LP de cada (inclusive, mesmo a parceria dos dois foi recebida com resistência e apenas graças à insistência de João Araújo, então diretor da gravadora). Dividindo as faixas entre si e se reunindo em três duetos, a dupla dá mostras do seu talento musical, resultando numa obra que bem lhes representa enquanto herdeiros da tradição de João Gilberto, principal inspiração de ambos, com interpretações contidas mas expressivas na medida certa. Para esse trabalho, os baianos contaram com o apoio de nomes significativos da bossa-nova, como Dori Caymmi, Edu Lobo e Roberto Menescal, além da contribuição de parceiros como Gilberto Gil e Torquato Neto. Junto a essas parcerias, Domingo também dava mais espaço ao Caetano compositor, já conhecido por canções como “De Manhã” e “Boa Palavra”, autor de oito das 12 faixas do álbum (uma delas junto a Torquato Neto). Se “Domingo” não chega a concretizar a revolução tropicalista iniciada com o seu LP seguinte, ainda assim já revela a qualidade poética e musical de Caetano, que ainda próximo à tradição bossa-novista demonstra um talento especial ao seguir os trilhos do gênero sem cair na mera imitação do que já havia sido feito anteriormente. Não à toa, canções como “Coração Vagabundo”, “Avarandado” e “Nenhuma Dor” permaneceram no repertório dos artistas e na memória do público ao longo dos anos. (Breno Fernandes)
Caetano Veloso (1967)
Considerado seu primeiro LP individual (o anterior é dividido com Gal), este disco tropicalista de Caetano tem 7 clássicos (“Alegria, Alegria” e “Tropicália”, pra ficar nos óbvios), a estranha “Anunciação”, com Rogério Duarte, o crítico baião “Eles”, com Gil, e ainda o Rc-7, banda que acompanhava Roberto Carlos, os Mutantes e os Beat boys argentinos, que o acompanham em “Alegria, alegria”, canção datada que não envelhece nunca. E tem os arranjadores Duprat, Cozzella e Medaglia. Unindo tudo, o talento, o canto, as canções e a cabeça de Caetano Veloso, coração vagabundo (do disco com Gal), guardando o mundo em si. O próprio Caetano não ficou satisfeito, ele objetivava a excelência dos Beatles do Pepper, mas o tempo provou o contrário: explodindo colorido, super disco que assume o Brasil contraditório, imenso e imerso num universo em mutação, terra em transe. (Paquito)
Tropicalia ou Panis et Circencis – com Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Torquato Neto, Tom Zé, Nara Leão e Rogério Duprat (1968)
Álbum símbolo do Tropicalismo, Panis Et Circenses (1968) oscila entre ser considerado um dos melhores e um dos mais importantes discos brasileiros. O álbum reuniu os músicos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, além dos poetas Torquato Neto e Capinam, todos sob a regência do maestro vanguardista Rogério Duprat. A aparente anarquia e o verdadeiro ecletismo cultural deram origem a um cardápio, servido às “pessoas da sala de jantar”, que reúne bolero, samba, música caribenha, tango, poesia concretista e muito mais. Nas composições, uma crítica à sociedade elitista totalmente desconectada da realidade do país – tudo isso em plena ditadura militar e sob o olhar torto de muita gente. Por se tratar do manifesto de um movimento, algumas canções servem mais para demonstrar o propósito do grupo e provocar o ouvinte, que para puro deleite. A icônica capa foi visivelmente inspirada pelo “Sgt. Pepper”, dos Beatles, lançado um ano antes. Já a contracapa foi estruturada em forma de roteiro cinematográfico, com anotações de sequências e cenas. Uma obra-prima da música brasileira.(Marília Moreira)
Caetano Veloso (1969)
Entre o final de 1968 e início de 1969, Caetano e Gilberto Gil foram presos pela Ditadura Militar. 54 dias numa prisão e mais quatro meses em confinamento em Salvador, uma prisão domiciliar que os impediam de sair da cidade. Depois disso foram mandados para o exílio em Londres. Este álbum, o segundo solo de Caetano, foi criado neste período de prisão e traz a atmosfera triste da época. A dupla fez os registros em casa num gravador de quatro canais e num pequeno estúdio da capital baiana. A gravação foi enviada posteriormente para Rogério Duprat, em São Paulo, criar os arranjos e colocar baixo, bateria e orquestra. A banda trazia Lanny Gordin, na guitarra; Sérgio Barroso, no baixo; Wilson das Neves, na bateria; Chiquinho de Moraes, no piano e órgão; além de Tião motorista, na percussão. Para o álbum, Caetano fez as bases das vozes, com Gilberto Gil sendo responsável por toda a parte do violão. Caetano não se sentia dominando o instrumento o suficiente ainda, sendo considerado abaixo do profissional pelo pares. Naquele período tenebroso na Bahia, ele conseguiu compor apenas quatro músicas. Uma delas foi Irene , feita em homenagem à irmã e única criada dentro da cadeia, sem violão. Além dela, a primeira parte do disco traz as alegorias náuticas, prevendo o exílio além mar, “The Empty Boat”, “Os Argonautas”, um fado que remete a um texto de Fernando Pessoa, e “Marinheiro Só”, um samba de roda de domínio público com a guitarra de Lanny gritando em modo Jimi Hendrix. Completam o lado A, “Lost in Paradise” e o grande sucesso da obra, “Atrás do Trio Elétrico”. Histórica, a música foi um sucesso no carnaval de Salvador de 1969 (Caetano não conseguiu acompanhar, já que foi solto na quarta-feira de cinzas daquele ano) e no restante do país, recolocando uma música carnavalesca nas paradas depois de muito tempo. É considerada também o momento inaugural de toda a fase nova da música baiana, valorizando os trios elétricos e a volta de Dodô e Osmar às ruas. O segundo lado do LP começa com Caetano cantando “Carolina” de Chico Buarque de um modo bastante particular e triste, relativizando a obra do carioca e despertando críticas. Ela e “Chuvas de Verão” remetem ao lado intérprete e devoto da bossa-nova de Caetano. O álbum traz ainda o tango argentino “Cambalache” (E. S. Discépolo), a bela “Não Identificado” e duas faixas inspiradas na poesia concreta, “Acrílico” (parceira com Rogério Duprat) e “Alfômega” (de Gilberto Gil). A capa, uma das poucas que não traz uma foto de Caetano, toda branca, com a assinatura do artista, reflete toda a angústia e tristeza do momento e remete ao álbum Branco dos Beatles, lançado no ano anterior. (Luciano Matos)
Caetano Veloso (1971)
A foto de um Caetano carrancudo e enrolado num casaco pesado, na capa do álbum, não dá margem para dúvidas: a melancolia é a marca deste trabalho. Com seis das sete faixas em inglês, o disco de 1971 foi o primeiro que o baiano gravou durante seu exílio, em Londres, e carrega em suas sete faixas uma enorme tristeza, ladeada pela sua vontade de voltar para o Brasil – mais exatamente para a Bahia. Errante pela capital do Reino Unido, Caetano tenta encontrar um caminho na solidão (“London London”) e pede notícias do Brasil para a irmã, desejando que tudo melhore (“Maria Bethânia”). Mas não esquece da dor que sentiu quando foi obrigado a deixar o seu país por conta da ditadura militar, a ponto de não conseguir chorar (“A Little More Blue”). Tudo, no fim das contas, desemboca na saudade de sua terra natal, que fica ainda mais evidente em “If You Hold a Stone”, que conta com a interpolação de versos de “Marinheiro Só” e “Quero Voltar Para a Bahia” – ou mesmo na interpretação de “Asa Branca”, com fonemas que evocam os sotaques do sertão nordestino. (Nelson Oliveira)
Transa (1972)
Obra prima e talvez o melhor álbum da carreira (e um dos maiores discos da história da música brasileira), Transa certamente é o trabalho que ajudou a moldar o cantor e compositor Caetano Veloso em uma figura de destaque no universo cult mundial. Perseguido pela ditadura e exilado em Londres, o cantor e compositor fez um trabalho orgânico, atemporal, espontâneo, gravando em grupo como num show ao vivo. Múltiplo, em sete faixas que transformam inglês e português quase que uma única língua, Transa ainda traz elementos do reggae descoberto por Caetano na capital inglesa e que foram incorporados com propriedade ao rock, psicodelia, MPB e raízes vindas de uma autêntica saudade da Bahia. Projeto único e imperdível. (Marcos Casé)
Barra 69 – Caetano e Gil ao Vivo (com Gilberto Gil) (1972)
Do show ao disco, Barra 69 nasceu pela força das coisas que tem de ser. Caetano e Gil estavam em apuros com a Ditadura Militar, precisando levantar recursos para o exílio que teria início em breve. A solução foram dois shows no Teatro Castro Alves em julho de 69. Registro deste momento, Barra 69 é flagrantemente roqueiro, algo valorizado pela participação de músicos como o jovem guitarrista Pepeu Gomes, e tropicalisticamente mistura referências que vão da moedinha número um do Tio Patinhas ao Hino do Esporte Clube Bahia. Em uma entrevista, Roberto Sant’Ana, produtor do show, me contou ter trocado gentilezas com o delegado regional da Polícia Federal, coronel Luis Artur de Carvalho, que permitiu que a empreitada acontecesse. “O TCA tinha mil e quinhentos lugares, eu vendi dois mil ingressos, que era pra fazer dinheiro”, disse. O produtor conta que não se intimidou com os temores e alertas de que a apresentação terminasse em quebra-quebra e destruição do mobiliário. “Ótimo, tá tudo velho, é bom que troca por um novo!”. O áudio de Barra 69 não é dos melhores e já na segunda faixa, “Frevo Rasgado”, o ouvinte se dá conta de que o registro tem mais valor histórico do que técnico. Sant’Ana afirma que nem sabia que o show estava sendo gravado, o que se deu de forma semi-profissional, em um half-track, pelo músico Perinho Albuquerque. Ao receber a fita, a ideia, inicialmente, não era lançar. Mas Nelson Motta pediu uma cópia, Roberto cedeu e dias depois atendeu uma ligação da Polygram, avisando que aquilo renderia um LP, mesmo com qualidade ruim. “Pra você ver, até os presidentes de gravadoras na época tinham uma visão histórica, musical, para o futuro. Hoje esse disco é procuradíssimo”. (Renato Cordeiro)
Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo (com Chico Buarque) (1972)
É um daqueles álbuns cercado de histórias e curiosidades. Em 1972, Caetano acabava de voltar do exílio em Londres e se juntou a Chico para um reencontro que também servia para acabar com as especulações de uma suposta briga entre eles, papo que vinha desde os tempos dos festivais. A ideia do espetáculo foi de Ronald Berbert de Castro, o Roni, dono de uma loja de discos em Salvador, que por não ser produtor registrado teve que fazer o show como beneficente em nome da Ajuda Social à Criança Desamparada. Eram duas bandas, uma de cada artista, com 12 músicos no palco. O dinheiro para os envolvidos acabou sendo muito pouco, mas a gravadora de ambos artistas colocou dois microfones no teatro, levou técnicos e registrou os shows, mesmo sem ter certeza do que faria com o material. No primeiro dia, ainda nos ensaios, Caetano e Chico receberam a notícia que Torquato Neto havia se suicidado. Nos dias 10 e 11 de novembro de 1972, mais de 4 mil pessoas lotaram as poltronas e o chão do Teatro Castro Alves, em Salvador, para assistir aquele encontro marcante da música brasileira. Caetano subiu ao palco de calça vermelha cintilante, corpete, tamancos altos e batom, na introdução de “Tropicália” simulou um strip-tease, rebolou, desmunhecou e imitou os movimentos de Carmen Miranda ao final. A repressão da Ditadura Militar estava presente nos dois dias e deixou registrada suas impressões em documentos, feitos a pedido do Exército e da Aeronáutica e assinados por inspetores da PF baiana. “A referida apresentação [tem] cenas que feriam a moral das famílias ali presentes(…) Podemos observar quanto a Caetano Veloso: pintado de batom e com trejeitos homossexuais; […] usando de uma afetação um tanto exagerada, muito mais apropriada para uma pessoa do sexo feminino”. Não era só o comportamento que era considerado subversivo, algumas músicas eram vistas pela censura como provocação. Por isto, no álbum, faixas como “Atrás da Porta”, “Partido Alto”, “Bárbara” e “Ana de Amsterdam” de Chico Buarque foram encobertas no estúdio por barulho de palmas e gritos da plateia sob ordem do Departamento de Polícia Federal. Há também cortes feitos pela censura, como no verso “na barriga da miséria / nasci brasileiro”, com o “brasileiro” sendo limado. Depois Chico colocou “batuqueiro” no lugar. Do repertório vasto apresentado no show muitas músicas não foram incluídas no álbum, incluindo canções de Jorge Ben, Milton Nascimento e uma participação de Dona Edite do Prato. No show, Caetano apresentou alguns esboços das músicas de seu então futuro disco – Araçá Azul. Mesmo proibida pela censura, “Apesar de Você” fechou o show de forma apoteótica e entusiasmada, com o público subindo ao palco para cantar junto. A presença da música foi tratada pela Ditadura como uma “inequívoca provocação” e acabou ficando de fora do álbum. O repertório aproximou também músicas dos dois artistas que dialogavam, como “Você Não Entende Nada” e “Cotidiano”, que virou praticamente uma só, mas também “Atrás da Porta” e “Esse Cara”, entre outras. O resultado é que o show fez um enorme sucesso e o disco também, mesmo com cortes, edições e uma grande redução do que foi ao vivo. (Luciano Matos)
Araçá Azul (1973)
Quinto álbum de estúdio da carreira solo e o primeiro após o exílio, Araçá Azul é também dos mais controversos de Caetano pela aposta numa sonoridade experimental e anti-comercial. Tanto é assim que após ser lançado em janeiro de 1973, teve uma das maiores devoluções de um disco às lojas, com o público não entendendo a proposta do trabalho. Gravado em 1972, no Estúdio Eldorado em São Paulo, ao longo de uma semana, apenas com Caetano, um técnico e seu assistente. O álbum é de fato altamente experimental, com influência dos poetas concretistas paulistanos, como Haroldo de Campos e Décio Pignatari, e dos trabalhos mais ousados de Walter Smetack, Walter Franco e Hermeto Paschoal. À frente de seu tempo, Araçá Azul reúne vinheta de canção folclórica, colagens sobrepostas de frases, barulhos e melodias, sons desconexos, guitarras pesadas, frases repetidas, música de 10 minutos, orquestrações sobrepostas por vozes, entre outros elementos. Tudo entrecortando canções que passam por bolero cubano, samba vertido para rock hendrixiano, samba de roda, bossa nova e jazz. (Luciano Matos)
Temporada de Verão – ao vivo na Bahia – com Gilberto Gil e Gal Costa (1974)
Depois da volta do exílio, Gil e Caetano voltaram a viver intensamente o Brasil e, mais especificamente, a Bahia. Em 1974, eles se juntaram a Gal Costa para gravar e lançar Temporada de Verão: Ao Vivo na Bahia. O disco foi gravado ao vivo, em uma série de shows que aconteceu no Teatro Vila Velha, em Salvador, entre 10 de janeiro e 22 de fevereiro daquele ano. Ao contrário do que a ocasião e o próprio título possam sugerir, o álbum não traz duos, nem faixas compartilhadas entre os três. No total, são 9 músicas, todas interpretações solo, de shows individuais: duas de Gal, três de Caetano Veloso e quatro de Gilberto Gil. Os arranjos e a produção são de Perinho Albuquerque. A capa é belíssima, com um horizonte laranja sobre o mar, sinal de um verão quente e intenso. Um pouco acima da linha do horizonte, surgem os rostos opostos de Caetano Veloso e Gilberto Gil. No meio dos dois, em uma tira com quatro fotografias verticais, aparece o rosto de Gal Costa; e, em uma delas, a face dá lugar ao sol. Uma curiosidade: algumas faixas não ficaram bem gravadas ao vivo e foram regravadas, posteriormente, na casa de Caetano Veloso. Para não destoar do restante da produção, os sons de aplausos da plateia foram adicionados à edição final. (Marilia Moreira)
Qualquer Coisa (1975)
Lançado no mesmo ano que Jóia, Qualquer Coisa é um disco quase que todo feito de releituras, mas extremamente autoral. Uma das grandes facetas de Caetano é catar pérolas do cancioneiro popular mundial e transforma-la revelando algo, realçando a beleza da canção. Sem dúvida um dos ensinamentos de seu mestre João Gilberto. A começar pela instigante capa, feita por Rogério Duarte, que cita Let it Be, dos Beatles, Qualquer Coisa é um disco de resgate e ressignificação. Caetano ressalta ainda mais a potencia melódica de três canções dos Beatles, não a toa, três mais McCartney. Através da suavidade dos arranjos, faz versões ao violão delicadíssimas de “Madrugada” e “Amor e Samba e Amor”, essa última pérola do repertório de Chico que Caetano se aprofunda na melodia utilizando-se de falsete que acaba dando uma ar mais “sofrido” a canção. Outro destaque vai para “Drume Negrita”, canção cubana acompanhada com a delicadeza e genialidade de João Donato. Outra que merece toda atenção é “Jorge de Capadócia”, mais uma genial releitura que Caetano faz de Jorge Ben com magistral arranjo do gigante Perinho Albuquerque. Interessante notar o contraste de três das quatro únicas músicas autorais do disco que fazem um interessante contraponto ao aceno coloquial do trabalho. Mesmo a faixa título, única do álbum que frequentou as rádios, elas soam enigmáticas, herméticas, mas não menos bonitas. Qualquer Coisa é o disco que dá o primeiro passo para mostrar o artista múltiplo e maduro que viria a fazer mais discos de releituras anos depois com Fina Estampa e Foreign Sound. (Ronei Jorge)
Jóia (1975)
Em 1974, Caetano começou a gravar material novo que, à medida que ia fazendo, lhe pareceu serem dois LPs distintos: “Qualquer coisa”, mais relax, e este “Joia” que, como diz o título, foi lapidado pra brilhar, sintético e bonito. Só que o belo do olhar caetânico nunca é comum, abarca desde melodias indígenas (“Asa”), nordestinas (“Pipoca Moderna”), até a força de “Gravidade” , o minimalismo radical de “Tudo, tudo, tudo” e “Gua”, e a doçura de “Minha mulher”. A musicalidade de Caetano está afiada nos vocalises e melodias, equilibrada com a veia poética. De quebra, Caetano interpreta e desvela “Help”, dos Beatles, e “Na asa do vento”, de João do Vale e Luís Vieira, apenas via voz e violão, herança de João Gilberto. Não tem hits, só beleza e atemporalidade, a tropicália interiorizada, com a produção caprichada de Perinho Albuquerque e participações de Gil, Quarteto em Cy e Bendengó. Vanguarda sem forçação de barra. (Paquito)
Doces Bárbaros (com Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia) (1976)
Surgido a partir de um sonho e provocação de Maria Bethânia, o Doces Bárbaros juntava Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e a própria Bethânia num mesmo grupo para celebrar os dez anos de sucesso de suas carreiras individuais, ao mesmo tempo deixando elas de lado por um tempo. Logo o grupo sairia com o show para uma turnê nacional iniciada em São Paulo, em junho de 1976, acompanhados de Perinho Santana, na guitarra; Arnaldo Brandão, no contrabaixo; Chiquinho Azevedo, na bateria; Tomás, no piano; Djalma Correia, na percussão; e Tuzé de Abreu e Mauro, na flauta e saxofone. Inicialmente, o projeto ganharia um registro em estúdio, mas Gal e Bethânia resistiram e sugeriram que gravassem o espetáculo ao vivo mesmo. O álbum reunia um punhado de canções inéditas, feitas para o projeto, parte delas permanecendo registradas apenas neste trabalho. O repertório foi feito em duas semanas, incluindo músicas emblemáticas que fariam bastante sucesso depois, como “Esotérico” (Gil) e “Um Índio” (Caetano). Além delas, destaque para “Os Mais Doces Bárbaros”, que deu nome ao grupo, “Pássaro Proibido”, “São João, Xangô Menino”, “Pé Quente, Cabeça Fria”, “Chuckberry Fields Forever” e “Nós, Por Exemplo”, primeira composição de Gil e que batizava o show de estreia dos quatro juntos na Bahia, em 1964. Além do material novo, canções de outros compositores entraram na química, como “Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, “Atiraste Uma Pedra”, de Herivelto Martins, “Tascara Guidon”, de Wally Salomão, e “Como São Lindos os Chineses”, de Pericles Cavalcanti. Mesmo sem uma grande qualidade de gravação, o álbum se tornou uma obra-prima e fez bastante sucesso. Na época do lançamento, no entanto, a obra foi criticada por outros artistas, produtores e críticos musicais. O tempo deu razão ao quarteto. (Luciano Matos)
Muitos Carnavais (1977)
O Caetano carnavalesco é um velho conhecido de quem aprecia os bailinhos à moda antiga e/ou a pipoca do trio Armandinho, Dodô e Osmar no Carnaval de Salvador. Embora seja uma compilação de faixas lançadas em compactos e LPs coletivos ao longo dos anos 70, “Muitos Carnavais” aparece como parte da discografia oficial de Caetano. A lista de canções inclui clássicos da folia de Momo, a exemplo de “Chuva, Suor e Cerveja”, gravada durante o exílio de Caetano em Londres, em 1971; “A Filha da Chiquita Bacana” e “Atrás do Trio Elétrico”. Também vale destacar a faixa-título, a única inédita do álbum; e “Deus e o Diabo”, que não costuma ser tão revisitada quanto suas semelhantes.(Julli Rodrigues)
Bicho (1977)
O décimo álbum de estúdio de Caetano Veloso se estrutura, principalmente, sobre as informações musicais da tradição africana e da disco music, dois elementos que podem parecer completamente díspares à primeira vista. Um olhar mais atento revela, no entanto, o que há de compartilhado: foi pelas mãos e vozes dos negros americanos que a música dançante das discotecas surgiu, em um primeiro momento, para depois ser apropriada pelos brancos. Os tambores da África e as batidas das pistas são duas formas de “ser gente linda e dançar”, como diz a letra de “Two Naira Fifty Kobo”. Expressões de uma “Gente” que quer brilhar e não morrer de fome. Foi o que Caetano quis dizer em “Bicho”, disco que traz, além das faixas citadas, hits como a dançante “Odara”, as reflexivas “Um Índio” e “Tigresa” – com arranjos deslumbrantes – e as lindíssimas “O Leãozinho” e “Alguém Cantando”, esta última interpretada por Nicinha, irmã de Caetano. Dança e delicadeza, o ancestral e o moderno em síntese. A crítica não entendeu bem, olhou torto, disse que “Bicho” era um convite à alienação, um exemplo da “dominação estrangeira”. Pena – não souberam enxergar um palmo além do próprio nariz. (Julli Rodrigues)
Muito – Dentro da Estrela Azulada (1978)
Pode se dizer que Muito é dos discos mais subestimados da carreira de Caetano. Talvez pelo momento em que foi lançado e as patrulhas ideológicas ainda fervilhavam, o disco pouco é lembrado como um clássico de sua discografia. De prima, Muito parece um disco somente relaxado, longe das elucubrações estéticas do compositor santo amarense. Mas aí que mora seu êxito. Esse Caetano mais “simples” dá vazão a um dos seus grandes trunfos, a capacidade de construir melodias cativantes e originais. O disco é uma sucessão delas. Da épica e autobiográfica “Terra”, passando pela atmosfera jazzística, muito em voga na mpb do fim dos 70, das belíssimas “Muito” e “Eu Te Amo”, até a ginga pré axé de “Love, Love, Love”, é impossível não querer cantar junto o repertório. Vale ressaltar ainda a habilidade incomum de Caetano de se travestir de outro autor como em “Muito Romântico”, feita para Roberto Carlos sob medida, parecendo ser uma canção do próprio. O grupo Outra Banda da Terra, que a época acompanhava o artista, está em plena forma, como se vê nos arranjos ao mesmo tempo pop e criativos de “Tempo de Estio” e na versão de “Quem Cochicha o Rabo Espicha” de Jorge Ben. A outra versão do disco é a homenagem a Tom e Vinicius, “Eu Sei Que Vou Te Amar”, marcando ainda mais o caráter extemporâneo da obra. (Ronei Jorge)
Maria Bethânia e Caetano Veloso ao Vivo (com Maria Bethânia) 1978
Registro ao vivo do espetáculo iniciado de forma despretensiosa em Salvador e que acabou gerando uma turnê por vários estados. O álbum traz parte de um dos shows da temporada carioca no Canecão. Das 22 músicas apresentadas, somente 12 entraram no disco. O encontro inédito dos irmãos juntos no palco traz canções que tratam de suas vidas e carreira. Algumas remetem ou marcaram a infância dos dois, como “Maria Bethânia” (Capiba), “Meu Primeiro Amor (Lejania)” (Hermínio Gimenez/Vrs. José Fortuna/Vrs. Pinheirinho Jr.) e “Número Um” (Benedito Lacerda/Mário Lago). Mas tem também sucessos da época, como “João e Maria” (Sivuca/Chico Buarque), além deles interpretando músicas marcantes da carreira do outro (“Leãozinho” e “Carcará”, por exemplo). Acompanhados de uma banda, que trazia Perinho Albuquerque (direção musical e guitarra), Rosinha de Valenca (violão), Paulinho Braga (bateria), Jamil Joanes (baixo), Tomaz Improta (teclados), Monica Millet (percussão) e Juarez Araujo (saxofone e flauta), a dupla apresenta ainda a inédita “Tudo de novo”, uma homenagem a “Minha mãe, meu pai, meu povo”. (Luciano Matos)
Cinema Transcendental (1979)
Cinema Transcendental foi o primeiro disco de Caetano que lembro de ter ouvido conscientemente. Lançado em 1979, eu ainda guri, logicamente não entendia a poética das letras, mas me fascinava com as “imagens” do vampiro que usava óculos escuros para a lágrima esconder e o dragão tatuado no braço do menino do rio. De qualquer modo, eu cantava todas as músicas acompanhando o velho LP. Só que o tempo foi passando, e minha relação com o artista e suas obras foi ficando controversa, numa espécie de amor e ódio oscilantes. Em alguns momentos achei um gênio, noutros um cara insuportavelmente chato. Entretanto, em todos os momentos, Cinema Transcendental continuou sendo o disco mais “redondo” de Caetano, não mais apenas por uma relação passional infantil, mas também com uma visão racional. Em 1979, ele já tinha liderado a Tropicália, vivido e gravado no exílio, lançado discos experimentais, flertado com a discoteca, criado álbuns herméticos, e vinha de duras críticas dos discos anteriores. Até que virou as costas para tudo que falavam e criou um álbum suave, melancólico e bonito de se ouvir. Assim como na capa, em que nos convida a descortinar o horizonte junto com ele, as músicas trazem um convite à contemplação das coisas belas, como o luar (“Lua de São Jorge”), o tempo (“Oração ao Tempo”), a negritude (“Beleza Pura”), as raízes (“Trilhos Urbanos”), além de belas homenagens, como a Torquato Neto (“Cajuína”), aos Novos Baianos (“Os Meninos Dançam”) e ao surfista Petit (“Menino do Rio”). Tudo emoldurado pela sonoridade do grupo A Outra Banda da Terra, com arranjos misturando mpb, afoxé, reggae, bolero, xote… Na época de guri, uma canção quase vinheta que me intrigava era “Badauê”, que surgiu misteriosamente e sua expressão cultural o povo aplaudiu, e já em 2011 tive a satisfação de estar no estúdio enquanto Cateano Veloso gravava outra música do Afoxé Badauê ao lado do mestre Moa do Katendê, assassinado em 2018 pela onda neofascista brasileira. Por essas e outras, Cinema Transcendental é um marco emocional e racional na história de Caetano e da música brasileira.(Leonardo Leão)
Outras Palavras (1981)
Ê anos 80! Charrete que perdeu o condutor, dizia Raul Seixas. Mas perdeu mesmo? Acho que talvez os anos 80 tenham encontrado aqui, em pleno 1981, um dos seus maiores e melhores condutores. Em Outras Palavras, Caetano destila um amor que caminha entre o desapego e o romantismo com “Vera Gata”, “Rapte-me Camaleoa” e (a pérola) “Lua e Estrela”. Por outro lado, a alegria mais intensa dos afoxés/ijexás “Sim/Não” e “Gema” também tem espaço, sobrando deixas até para levadas mais pop como “Quero um Baby Seu”. Musicalmente o disco traz, dentre outras características, influência forte de ijexá, guitarras macias e marcantes, além de métricas e melodias que se tornaram muito identificadas com esse filho de dona Canô. Coincidência ou não, o álbum se encerra com “Jeito de Corpo”, música que, simbolicamente, sintetiza um pouco de tudo isso. No saldo final fica a sensação de que, naquele momento histórico, o compositor santo-amarense via uma trilha clara pro Brasil, apesar da dor. E a canção que dá título e abertura ao disco, com sua métrica de canto e respirações sonoras trabalhadas pela seção rítmica da banda e pelo baixo preciso de Dadi deu a dica (pra quem quis captar): Caetano queria dizer que, daqui pra frente, outras palavras.(Eduardo Galindo)
Cores, Nomes (1982)
Em conjunto com A Outra Banda da Terra, Caetano Veloso fez de “Cores, Nomes” um de seus trabalhos mais versáteis – indo ao encontro de sua persona camaleônica. Logo de cara, o luxuoso projeto gráfico do LP, chamou a atenção de quem pode tê-lo em mãos. A abertura do álbum, com “Queixa”, um dos maiores sucessos do baiano, também conquistou as rádios e os ouvidos do país. Com sonoridade similar à de seu antecessor, o álbum de 1982 alia momentos solares e de extremo lirismo em “Trem das Cores”, sua canção-símbolo, a instantes de introspecção convidativa, como em “Surpresa”, onde se destaca o piano de João Donato. O minimalismo dos versos dessa canção pode ser encontrado também em “Um Canto de Afoxé Para o Bloco do Ilê”. São opções estéticas que contrastam de forma notável aos excessos prosaicos da dylanesca-tropical “Ele Me Deu Um Beijo Na Boca”. Ainda há espaço, em cinco das 12 faixas do álbum, para versões interessantes de composições (suas e de outros artistas) gravadas anteriormente ou naquele mesmo ano – caso de “Sina”, de Djavan. Por fim, em “Sonhos”, de Peninha, e “Meu Bem, Meu Mal”, de sua própria autoria, temos o melhor de Caetano em sua faceta intérprete. (Nelson Oliveira)
Uns (1983)
Uns é um álbum que reúne pérolas escondidas da obra de Caetano Veloso. Entre canções românticas e divertidas, a obra tem aquele sabor pop que o cantor e compositor baiano entrega como ninguém. Em entrevistas Caê costuma mencioná-lo como um dos seus álbuns preferidos. Destaques para “Eclipse Oculto” – um rock em que Caetano se revela atento às tendências musicais que marcariam o início da década de 80 e “A Outra Banda da Terra” – faixa em que o cantor presta homenagem a banda homônima que o acompanhou por cerca de 7 anos nos estúdios e shows. Ah, Uns ainda tem também o megahit “Você é Linda” que ao longo dos anos iria ser maturada na alma do povo brasileiro . (Leandro Pessoa)
Velô (1984)
Velô é o álbum em que Caetano abraça a linguagem musical dos anos 80: guitarras, baterias eletrônicas e sintetizadores são o traje escolhido para as canções. A obra reúne uma seleção de letras brilhantes do cantor: da crítica libertária de “Podres Poderes”, passando pelo mergulho nos desencontros dos desejos de “O Quereres” até chegar a ode de “A Língua” – com participação de Elza Soares. Depois de anos acompanhado pela Outra Banda da Terra, em Velô Caetano contou com um novo time de músicos, chamado a Banda Nova. Antes da gravação eles realizaram uma turnê para a maturação do repertório. A sonoridade anos 80 do álbum contou com a co-produção do tecladista Ricardo Cristaldi, apresentado à época por Caetano como alguém que “dominava muito bem essa coisa eletrônica”. (Leandro Pessoa)
Totalmente Demais (1986)
Gravado ao vivo no Golden Room do Copacabana Palace, Rio de Janeiro, dentro do Projeto Luz do Solo, traz Caetano mais despido no palco do que nunca, acompanhado apenas de seu violão. Mesmo retirado de um show, Totalmente Demais funciona quase como um bom álbum de inéditas, já que é praticamente um apanhado de faixas gravadas pelo artista pela primeira vez. No repertório, com 16 músicas, o foco são as versões, mas há quatro composições de sua autoria. Nenhuma delas é inédita, mas com exceção de “O Quereres” (de Velô, 1984), as outras três ganharam pela primeira vez registro de Caetano, já que originalmente foram gravadas por cantoras: “Vaca Profana”, presente no álbum Profana de Gal Costa, de 1984; “Nosso Estranho Amor”, lançada em 1980 no álbum Olhos Felizes de Marina Lima, com participação do baiano; e “Dom de Iludir”, que já havia tinha registros de Maria Creusa e Gal Costa. Entre as versões, há composições de algumas referências do baiano. Desde ícones do rádio, como Dalva de Oliveira em “Calúnia” (Marino Pinto/Paulo Soledade), ao tango de Carlos Gardel em “Cuesta Abajo” (Carlos Gardel/Alfredo Le Pera). Do baião de Humberto Teixeira, na singela “Kalu”, até o samba, em “Pra Que Mentir” (Noel Rosa/Vadico) e “Lealdade” (Wilson Batista/Jorge de Castro), e a bossa-nova, que domina o formato de boa parte das interpretações, com “Hô-Bá-Lá-Lá/ Bim Bom”, de João Gilberto, e “Solidão”, de Tom Jobim/Alcides Fernandes. Talvez o diferencial do álbum, no entanto, seja a sintonia de Caetano com o pop e rock do período, já que o BRock vivia seu auge naquele período. Além do sucesso dele com Marina, ele canta “Todo Amor Que Houver Nessa Vida”, de Roberto Frejat/Cazuza, hit do Barão Vermelho. Faz uma linda interpretação de “Amanhã”, de Guilherme Arantes. Além da divertida faixa que dá título ao álbum, “Totalmente Demais”, sucesso de Arnaldo Brandão/Tavinho Paes/Robério Rafael naquele ano com a banda Hanói-Hanói, recebida aos risos pelo público. (Luciano Matos)
Caetano (1987)
Um álbum pouco badalado, mas que traz grandes momentos da lavra de Caetano, incluindo alguns sucessos menores. Entre elas está “Eu Sou Neguinha”, feita para Arto Lindsay, inspirada numa foto do andrógino Prince e uma resposta para “Eu Sou Negão”, de Gerônimo. Era a desejada por Caetano para tocar nas rádios, mas o maior sucesso foi “Fera Ferida”, parceria de Roberto e Erasmo Carlos. Também ganhou destaque a “latina” “Vamo Comer”, com participação de Luiz Melodia e texto abordando agruras da sociedade brasileira. Um dos trunfos do álbum, no entanto, é a poética e bela “O Ciúme”. Numa atmosfera melancólica, Caetano canta ainda sobre o José bíblico, em “José”; cita Carlos Drummond de Andrade e Mick Jagger, em “Noite de Hotel”; presta homenagem a atriz italiana Giulietta Masina. Em “Ia Omin Bum” a homenageada é Mãe Menininha do Gantois, numa faixa com a participação de sua neta, a percussionista Mônica Millet. O afoxé “Depois Que O Ilê Passar” é o outro momento afrobaiano do álbum, que como curiosidade traz pela primeira vez Carlinhos Brown na percussão de um álbum de Caetano. (Luciano Matos)
Estrangeiro (1989)
Embora raramente apontado como um dos melhores álbuns de Caetano, este é um disco que merece mais atenção do público. É daqueles que precisa ser revisitado para ter seu valor descoberto. A começar por “O Estrangeiro”, canção que abre o álbum. Uma das faixas mais longas da carreira de Caetano, com mais de seis minutos, é exagerada na duração e também nos elementos musicais. Muitos instrumentos, elementos eletrônicos , distorções e uma voz feminino muito aguda. O namoro com os elementos eletrônicos está também na letra, que cita o Sinclavier, um sintetizador lançado nos anos 1970. Em O Estrangeiro, O que parece exagero é apenas muita emoção. O disco teve o mérito também de fazer despontar nacionalmente Carlinhos Brown, compositor de Meia-Lua Inteira e percussionista de três faixas. A simplicidade da música de Brown contrasta com a complexidade de “O Estrangeiro”, o que prova uma das qualidades de Caetano, que é transitar entre o popular e erudito com uma rara facilidade. Muita atenção à distópica e sombria “Outros Românticos”. O álbum é um trabalho irretocável do produtores Arto Lindsay e Peter Sherer. (Roberto Midlej)
Circuladô (1991)
Segundo disco da leva de produções de Arto Lindsay para discos de Caetano entre o fim dos anos 80 e começo dos anos 90, Circuladô é inspirado em poema de Haroldo de Campos, mas também tem homenagens a uma professora de Santo Amaro (“Neide Candolina”), ao filho Tom (“Boas Vindas”), Guimarães Rosa (“A Terceira Margem do Rio”). A produção de Arto dá um salto em relação ao disco anterior, “Estrangeiro”, explorando menos o rock e mais a música experimental. Tem participações de Ryuichi Sakamoto, Jaques Morelenbaum, do próprio Arto na guitarra em “Ela Ela” e “O Cu do Mundo”. Como se não bastasse, é o disco de “Itapuã”. (Paula Carvalho)
Circuladô Vivo (1992)
Há 30 anos, discos ao vivo eram ainda um acontecimento especial na vida de um artista. Talvez isto explique o capricho dos arranjos deste ótimo álbum, produzido pelo próprio Caetano e Jaques Morelenbaum, que é também violoncelista de diversas faixas. É um ótimo disco para quem quer se iniciar na obra de Caetano, porque tem canções de diversas fases e estilos, incluindo muitos clássicos de seu repertório, como “Um Índio”, “Queixa”, “O Leãozinho” e “Você É Linda”. Versões de “Black or White” (Michael Jackson), “Chega de Saudade” (de Tom e Vinicius, que mostra também as qualidades de Caetano como violonista) e “Jokerman” mostram a potência de Caetano como intérprete. Mas, nesse quesito, nenhuma supera o tango “Mano a Mano” (Gardel), em uma interpretação inesquecível acompanhado de Morelenbaum. Pra levantar o astral, termina com um bloco alegre e carnavalesco, em clima de fim de festa, com “Os Mais Doces Bárbaros”, “A Filha da Chiquita Bacana” e “Chuva, Suor e Cerveja”. E nada melhor que encerrar com “Sampa” para mostrar a genialidade de Caetano como poeta. O clássico, gravado inicialmente no disco Muito (1978), se torna um samba mais acelerado, festivo e alegre que em sua versão original. (Roberto Midlej)
Tropicália 2 (com Gilberto Gil) (1993)
O violão melancólico de Gil seguido do baixo profundo de Arnolpho Lima Filho, vulgo Liminha, abrem esse disco comemorativo na consagrada faixa “Haiti”. Estávamos em 1993 e completavam-se 25 anos do lançamento do disco Tropicalia ou Panis et Circencis. Celebrava-se também os recém-completados 50 anos de idade tanto Caetano Veloso quanto Gilberto Gil, o que explica os números que ilustram a capa. Entre participações de Carlinhos Brown, Rafael Rabelo, Nara Gil, Ramiro Mussoto, Leo Gandelman, Moreno Veloso, Lucas Santana e muitos outros, vão se construindo músicas que transitam do samba-reggae modernizado de “Avisa Lá” à suave nordestinidade de “Baião Atemporal”; do suingue hendrixiano de “Wait Until Tomorrow” até o encerramento no samba emepebezado de “Desde Que o Samba É Samba”, com direito ainda a passagem pelo experimentalismo do “Rap Popcreto”. Meu amigo Luciano Matos outro dia disse que é um disco onde “música eletrônica, rap, Jimi Hendrix e axé music convivem com bossa nova, samba e baião”. Parece muito adequado, especialmente porque o Tropicália 2 traz no encarte um manifesto que reforça o alinhamento com seu antecessor Tropicalia ou Panis et Circencis, demarcando os chamados valores tropicalista e faz ver que, ao final, por todos os caminhos trilhados por Caetano (e também por Gil), o ideário tropicalista estava presente, lembrando que a Tropicália foi/é um movimento de proposições filosóficas/estéticas muito mais abrangentes do que qualquer estrita estética musical pode abarcar. (Eduardo Galindo)
Fina Estampa (1994)
Inicialmente, a gravadora havia proposto que Caetano gravasse em espanhol versões de seus maiores sucessos, assim como já haviam feito Roberto Carlos e Chico Buarque. A ideia era atingir o mercado latino. Caetano não gostava do formato e propôs gravar músicas hispano-americanas, um desejo antigo. Fez uma seleção de canções de compositores latinos que guardava em sua memória afetiva desde os anos 1940 e 1950. O resultado traz Caetano como intérprete de tangos, rumbas, boleros, guarânias e salsas, numa espécie de antologia com músicas de autores cubanos, argentinos, mexicanos, paraguaios, peruano, venezuelanos e porto riquenhos. (Luciano Matos)
Livro (1997)
Produzido enquanto Caetano escrevia sua autobiografia Verdade Tropical, Livro acabou sendo nomeado por conta desse outro projeto. Ironicamente, no entanto, o processo de produção do disco dessa vez foi especialmente ancorado na sonoridade, e várias faixas só receberam letra depois que um esqueleto sonoro já estava pronto. As referências para essa musicalidade, por sua vez, vieram durante a turnê de seu álbum anterior, Fina Estampa. Se apresentando sem percussão para esses shows, Caetano diz ter sentido falta de um acompanhamento rítmico mais presente em seu trabalho. Ao mesmo tempo, durante as viagens o artista e sua banda passaram por um bom período ouvindo a música de Gil Evans com Miles Davis e o álbum branco de João Gilberto, de modo que a leveza e fluidez do jazz e da bossa-nova completaram os alicerces para a idealização de Livro. Assim, surgiu a ideia de uma sonoridade cool calcada na percussão afro-baiana e na precisão dos arranjos de sopros e metais, com toques experimentais de melodias espelhadas (a exemplo da introdução de “Você É Minha”, que remete a “Você É Linda”) e até mesmo dodecafônicas (como em “Doideca”). Embora a sonoridade fosse inicialmente o centro das atenções para a produção do álbum, a faceta letrista de Caetano também é marcante nesse trabalho, com uma ampla variedade de temas, de sua mitologia pessoal nova-iorquina em “Manhatã” à homenagem à escola de samba da Mangueira em “Onde o Rio É Mais Baiano”, passando por uma ótima micro-epopeia de Alexandre, o Grande na canção “Alexandre”. Fechando o disco, a faixa “Pra Ninguém” faz uma listagem do gosto de Caetano pela música brasileira, citando vários colegas e, como sempre, colocando João Gilberto além de qualquer outra música, inclusive do silêncio. Claro que o próprio autor não o faria, mas Livro, de Caetano, também poderia estar em qualquer lista daquilo que há de melhor em nossa música. (Breno Fernandes)
Omaggio a Federico e Giulieta ao Vivo (1999)
A maioria dos álbuns ao vivo lançados por Caetano foram registros de turnês dos discos de inéditas. Esse foi uma das exceções. Gravado ao vivo na Itália, Omaggio a Federico e Giulietta é um tributo ao diretor de cinema italiano Federico Fellini e à sua esposa e atriz, Giulietta Masina. Os shows aconteceram na cidade natal do diretor, Rimini, no dia do seu aniversário de casamento com Giulietta. O baiano mescla canções relacionadas ao cinema e algumas autorais, trazendo experiências musicais de sua infância em Santo Amaro. Da própria lavra entraram “Trilhos Urbanos”, “Lua Lua Lua Lua”, “Coração Vagabundo”, “Cajuína” e, claro, “Giulietta Masina”. Os temas fellinianos aparecem em músicas de Nino Rota, “Que Não Se Vê”, “Gelsomina” e “Le Notti Di Cabiria”, e de outros autores, como “Luna Rossa”, “Patricia” e “Let’s Face the Music and Dance”. Há ainda emblemas da música brasileira, como “Chega de Saudade” (Tom Jobim, Vinicius de Moraes) e “Coração Materno” (Vicente Celestino). Primo de Fina Estampa, Omaggio é a retribuição de Caetano para Fellini e ao cinema italiano, essenciais para sua formação e desenvolvimento intelectual. (Luciano Matos)
Noites do Norte (2000)
De Joaquim Nabuco (autor da letra-tese “Noites do Norte”) a Márcio Vitor (que participa das percussões no disco), Noites do Norte traz o embrião do Caetano dos anos 2000, com músicos como Moreno Veloso, Davi Moraes, Domenico Lancellotti e Pedro Sá, além da percussão com baianos e cariocas veteranos, como Armando Marçal. Produzido pelo próprio Caetano em co-autoria com Jaques Morelenbaum, é um de seus trabalhos mais santo amarenses – não que algum não seja – e reúne teses dele sobre o Brasil reafirmadas até hoje. (Paula Carvalho)
Eu Não Peço Desculpa (com Jorge Mautner) 2002
Se havia alguém mais tropicalista do que Caetano Veloso, este alguém era Jorge Mautner, definido pelo próprio baiano como “hipertropicalista”. Em 2002, os dois se juntaram em um álbum para interpretar músicas da lavra de ambos, incluindo as parcerias, como “Graça Divina” e “Homem Bomba”. A faixa-título, “Eu Não Peço Desculpa”, era um verso pinçado de “Todo Errado”, que abre os trabalhos e ganhou um divertido videoclipe, com a dupla pilotando aviões. Outro achado era o fato dos intérpretes se revezarem ao dar vozes a músicas consagradas de um e de outro, casos de “Maracatu Atômico”, reinterpretada por Caetano, e “Cajuína”, na boca de Mautner. O repertório inspirado é o principal atrativo desse encontro único na música brasileira, encerrado em grande estilo e clima de festa ao som do “Hino do Carnaval Brasileiro”. Só folia! (Raphael Vidigal)
A Foreign Sound (2004)
Nos tempos de exílio, em Londres, Caetano cogitou a possibilidade de lançar um álbum com repertório de canções anglo-americanas. Com o passar do tempo, desistiu da ideia, mas anos depois, com insistência do produtor Bob Hurwitz, ele retomou os planos. Hurwitz dizia que o baiano era a única pessoa do mundo que poderia gravar Cole Porter e Bob Dylan num mesmo álbum. Assim como Fina Estampa, A Foreign Sound é uma obra de Caetano como intérprete de músicas estrangeiras que remetem à sua infância. O repertório traz uma seleção variada de standards que inclui, claro, Cole Porter e Bob Dylan, mas também George Gershwin, Jerome Kern, Richard Rodgers, Duke Ellington, além de Stevie Wonder e um surpreendente Kurt Cobain. Na época do lançamento, Caetano ressaltou que os norte-americanos fazem as melhores canções do mundo, mas ele fez as interpretações a seu modo, inserindo bossa nova e tropicália nesse caldo. (Luciano Matos)
Onqotô (Trilha Sonora Original do Espetáculo do Grupo Corpo) com (2005)
Caetano Veloso foi outro dos grandes nomes da música brasileira convidado para compor uma trilha sonora de um espetáculo do Grupo Corpo. Ele assina com José Miguel Wisnik a trilha de Onqontô , que tem como ponto de partida uma bem-humorada discussão sobre a origem do Universo, “Big Bang”. Com produção de Alê Siqueira, a obra traz em 42 minutos, 9 temas, entre uma maioria instrumentais e algumas com letra, com diálogos rítmicos, melódicos e poéticos em torno da origem e do desamparo inerente à humanidade. Entre as canções com letras, há um poema de Gregório de Mattos e versos de Os Lusíadas, de Luis de Camões. (Luciano Matos)
Cê (2006)
Caetano Veloso pode até ser enquadrado como um compositor de canções com letras poéticas e filosóficas em estilo bossa-novista, mas há que admitir-se também que a sua discografia é repleta de momentos de ruptura dessa característica. Os anos 2000 também apresentaram uma versão dissonante de Caetano, que se uniu à banda Cê, formada por Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, especialmente para acompanhá-lo. Junto dos jovens músicos, o artista baiano explorou a linguagem do rock que esteve em voga naquela época e produziu três álbuns. Em Cê, álbum que abre e dá nome à trilogia, Caetano provoca um certo baque em quem se acostumou com a imagem média criada pelo artista, e que foi bastante explorada nos anos 1990. Aquele Caetano discípulo de João Gilberto e da Bossa Nova, que se apresentava elegante dentro de um terno bem alinhado, fica completamente de lado nesse projeto. O baiano se mostra no álbum um compositor conectado às gírias juvenis e cria versos como “você foi mor rata comigo”. A expressão ele aprendeu com os filhos Tom e Zeca, respectivamente com 9 e 14 anos à época, e fazem parte da canção “Rocks”. A faixa tem uma forte presença da guitarra com timbre agudo e sonoridade agressiva (típica dos anos 2000) e é a tônica do álbum. (Marcelo Argolo)
Roberto Carlos e Caetano Veloso e a música de Tom Jobim (com Roberto Carlos) (2008)
Muitas homenagens surgiram em 2008, quando a bossa nova completou 50 anos. Uma delas foi especial. Gravado em duas noites no Ibirapuera (SP) e uma no Theatro Municipal (RJ), o show “Roberto Carlos e Caetano Veloso e a Música de Tom Jobim” virou CD e DVD, mas não está na discografia do site oficial de Caetano (no de Roberto, sim). Histórico pela celebração e pela reunião dos dois astros no palco, o projeto tem outros destaques como os belos arranjos ou a sutileza da interpretação de um Roberto que não se vê nos seus trabalhos mais recentes. Caetano prefere o ar mais solene e aproveita bem o talento dos músicos presentes na banda e orquestra para desfilar elegância, como se reverenciasse a obra de Jobim. Uma homenagem que contou ainda com o pianista e neto de Tom, Daniel Jobim. Trabalho positivamente fora da curva, como quase tudo que o santo-amarense assina. (Marcos Casé)
Zii e Zie (2009)
Zii & Zie, segundo álbum da Trilogia Cê, é um trabalho em que as referências da música brasileira voltam a circular na sonoridade, que apresenta como principal característica as variações de samba com instrumentação de rock, o que já era uma tendência na produção brasileira naquele período. As faixas “Ingenuidade” e “Incompatibilidade de Gênios” são bons exemplos de como a musicalidade do disco foi construída, pois é perceptível a estrutura de construção de uma canção de samba, mesmo com o ritmo quebrado por uma batida pouco usual de bateria. A primeira é uma faixa inédita, enquanto a segunda uma versão para um clássico da MPB, composto por João Bosco em parceria com Aldir Blanc. Para essa forma de se fazer samba, o próprio Caetano deu o nome de Transamba, em contraposição aos Transrocks de Cê, nome também dado pelo artista. (Marcelo Argolo)
Abraçaço (2012)
O álbum que fecha a Trilogia Cê é Abraçaço, em que Caetano volta a apresentar letras com um trabalho mais reflexivo e poético. A presença da banda Cê marca a unidade com os outros dois discos da trilogia, mas dessa vez o cantor se apresenta também como instrumentista e assume, muitas vezes, o papel de guia da banda com o violão. “Estou triste” é uma canção que exemplifica essas duas questões que marcam o álbum. Alguns versos emblemáticos como “por que será que existe o que quer que seja”, “eu me sinto vazio e ainda assim farto” e “o lugar mais frio do rio é o meu quarto” mostram a retomada de uma construção mais poética para as letras das canções. Também é possível perceber na gravação que o violão, tocado por Caetano, está à frente e guiando o resto da banda. É como se Abraçaço marcasse o final de um processo de experimentação e síntese, em que Caetano se afastou do seu estilo consolidado para absorver novas influências e retorna a ele para afirmar: “a bossa-nova é foda!”. (Marcelo Argolo)
Caetano Veloso & Ivan Sacerdote (2020)
Caetano Veloso já dividiu álbuns com vários artistas, como Roberto Carlos, Maria Bethânia e Jorge Mautner. Mas, até então, eram encontros com figuras estabelecidas – mesmo a jovem Maria Gadú, com quem fez registro ao vivo em 2011, já era conhecida pelo hit “Shimbalaiê”. Por isso, Caetano Veloso e Ivan Sacerdote tem algo de singular: um apadrinhamento de alguém que, ainda que não sendo um estreante, era desconhecido do grande público. Caetano conheceu Sacerdote em um dos saraus promovidos na própria casa, e se encantou com a habilidade do clarinetista com quem entrou em estúdio em 2019, por sugestão da empresária Paula Lavigne. Em paralelo, o disco ainda nem lançado, Sacerdote mostrava a força do próprio trabalho, fosse acompanhando Rosa Passos ou ganhando o prêmio de Melhor Música Instrumental, um dos mais importantes do Festival de Música Educadora FM, por “Coco Pra Vicente”. O álbum com Caetano mostra que o veterano mantém uma relação com a Bahia que vai bem além das visitas ao Porto da Barra. Nascido no Rio, Sacerdote é parte de um rico ecossistema instrumental soteropolitano ao qual o tropicalista devota atenção. A cena inclui desde o veterano violonista Aderbal Duarte até o guitarrista Felipe Guedes, que chegou a participar de shows de lançamento do álbum de Caetano e Sacerdote, interrompidos pela pandemia. Caetano Veloso e Ivan Sacerdote é disco revisionista, sem inéditas, em que pese a primeira gravação do compositor para “Você não gosta mim”, grava originalmente por Gal. O que me lembra que o toque elegante de Sacerdote por vezes parece atravessar outras dimensões da discografia do colega. A primeira faixa, “Peter Gast”, sugerida por ele para o repertório, tem fraseado que parece evocar “Coração Vagabundo”, primeira faixa de “Domingo”, LP de estreia de Gal e Caetano. (Renato Cordeiro)
Meu Coco (2021 )
Nove anos após o seu último álbum de inéditas, Caetano anunciou uma boa surpresa aos seus fãs no segundo semestre de 2021, com a chegada de Meu Coco. O próprio compositor já havia se questionado se seguiria produzindo novas canções, mas revelou ter sentido o ímpeto de fazê-lo depois que um esboço da faixa-título do seu novo álbum lhe veio à mente em 2019. Ritmo e melodia desenrolando uma sequência de nomes de mulheres brasileiras (Simone Raimunda, Janaínas, Leila Diniz, Naras, Bethânias e Elis…), a inspiração seria completa quando a levada de violão fosse apresentada ao Balé Folclórico da Bahia, que a daria corpo e movimento. No entanto, veio a pandemia de COVID-19 e, durante o isolamento, outras faixas seguiram rebentando da cabeça de Caetano, sugerindo uma continuidade ao universo sugerido por Meu Coco. Com essas ideias reunidas, o álbum se abre e engloba “tudo o que se passava em sua cabeça no momento”, como disse o compositor. Entre os momentos autobiográficos e as referências à história e contemporaneidade brasileira e mundial, as faixas transitam entre o pessoal e o social com a fluidez de quem há quase seis décadas divide sua vida e voz com milhões de pessoas. A ternura de avô em “Autoacalanto” é a mesma que oferta seu canto às mais de 16 mil crianças brasileiras registradas como “Enzo Gabriel” em 2019. Se a lucidez não o deixa alheio às agruras de nossos tempos, vide “Anjos Tronchos” e “Não Vou Deixar”, sua força e um certo otimismo se ancoram na consciência de uma potência criativa do Brasil, capaz de transformar realidades. Convocando de Chico Buarque e Gilberto Gil a Marília Mendonça e Leo Santana, o coco de Caetano mais uma vez é o ponto de encontro da pluralidade que a experiência cultural do país propicia. Depois de uma vida mergulhando em nossa ambivalência, Caetano retoma sua faceta de compositor com a percepção aguçada que marca sua carreira e, “teimoso e melódico” como há de ser, afirma em meio a um mundo que a cada dia se desmorona que, sim, “vale viver”. (Breno Fernandes)