As novas transas de Maria Beraldo em “Colinho”, seu segundo álbum

Maria Beraldo
maria beraldo Colinho
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Mais completo, mais diverso e muito mais safado. Maria Beraldo apresenta a sequência do seu primeiro disco “CAVALA” e demonstra não só maturidade artística, mas uma visão única da música brasileira. Leia sobre outros discos.

Por Pedro Antunes de Paula

 

 

Seis anos depois da estreia em carreira solo com “CAVALA”, Maria Beraldo lança “Colinho”, sucessor que expande os temas do disco anterior. Experimental na maneira de trabalhar suas canções, Maria apresenta uma crueza no processamento de suas instrumentações eletrônicas em dinâmica com material acústico, sem deixar que a força instrumental ofusque a potência de suas letras e interpretação.

Sempre existiu uma substância no trabalho de Maria, a qual era difícil de rastrear com precisão em seu primeiro disco. Trabalho de inegável potência, é, por outro lado, de rápido consumo, com seus breves 24 minutos de duração. De forma alguma sua estreia perde força por isso, pelo contrário, demonstra como em pouco tempo é possível apresentar uma diversidade de ideias.

Entretanto, não haveria motivos para consolidar aquela breve peça sonora como representativa da visão artística de Maria, já que demonstrava a capacidade da artista em explorar muitas possibilidades sonoras. “Colinho”, desse modo, vem para cumprir o papel de consolidar a perspectiva de Beraldo sobre sua música.

“Que encontro, safada / que encanto e rebolado”, são as primeiras palavras deste novo trabalho e já estabelecem o tom mais direto da obra. Explícita, a canção “Colinho” traz um beat em processamento mais cru, que se diferencia do tratamento do disco anterior e já traz um peso até então não explorado. Enquanto o tesão contamina a beleza das coisas ao seu redor (“como a tua bunda na minha cara: maravilhosa // essa cidade nunca foi tão linda”), a célula rítmica somada ao timbre bem acústico dos pianos jazzísticos assenta o ouvinte, e traz um contraste temático e estético muito único, já que a faixa transita entre o deslumbramento do desejo e sua própria violência.

Cheio de contraste

De cabo a rabo [da baleia], se observa uma coisa: como é cheio de contrastes esse disco. Seja pela brincadeira de troca eufemista da clássica “Sentada” do funk pelo “Colinho”, seja por esse vai e vem de propostas sonoras, elasticidade que poderia desagregar a linha estética do trabalho, mas que é grudada sob a tutela do tema, ligeiro ou extremamente sexual, presente nas faixas.

O momento que mais pode servir para ilustrar a relação que esse trabalho estabelece com os contrastes, e que de certo é um dos pontos altos, é a dinâmica entre “Matagal”, canção em parceria com Zélia Duncan, com a teatral e paranoica “I CAN’T STAND MY FATHER ANYMORE”. Se de um lado o desejo é apresentado de forma cortês – vide o uso de “would you” [você gostaria?/poderia?/queres?] seguido por “take off my clothes” [tirar minha roupa] -, do outro, a sexualidade seria, de forma irônica ou irresoluta, resultado do ódio e não sustentação de uma relação familiar.

Essa disposição temática entre a família e sexualidade, inclusive, não é novidade na obra de Maria, na medida em que “I CAN’T STAND…” parece se comportar como uma extensão muito mais violenta de “Amor Verdade”, apresentada em seu primeiro disco.

A força desse momento é resultado de uma direção muito bem estabelecida por Maria, em que a sua interpretação vocal é somada às intencionalidades propostas pela instrumentação. Se em “Matagal” os violões harmoniosos projetam a paisagem bucólica descrita pela performance suave de Maria e Zélia, os pianos estruturalmente quebrados e a bateria agressiva de “I CAN’T STAND…” refletem a paranoia provocativa e irônica do eu-lírico em uma interpretação muito potente de Beraldo.

O que dá seguimento à esse momento é a ritmada “Crying Now”, que acrescenta profundidade e uma espécie de narrativa ao eu-lírico, já que introduz a noção de tempo (“I wasn’t crying late / I was crying now) [“Eu não estava chorando antes / Eu estava chorando agora], de modo extremamente minimalista. É também, com certeza, um ápice de construção instrumental do disco.

Com os arranjos em constante variância, há certos espaços não preenchidos musicalmente na comparação entre faixas. Isso ocorre na dinâmica entre “Baleia” e “Ninfomaníaca”, em que a percussividade e ataques instrumentais silenciam-se para dar vasão ao arranjo de cordas. Essa proposta é comum ao longo do trabalho, que constrói novos sensos a medida em que as faixas se apresentam, progressivamente.  

Maria Beraldo por Ivan Nishita

A extremidade do encontro

À primeira escuta, é a diversidade instrumental, indeterminação e maleabilidade de gêneros que chamam atenção ao valor desse trabalho – que, sem substância adjetiva suficiente, pode ser chamado de experimental. Mas é pela maneira como a artista trabalha suas temáticas que a obra se enriquece, principalmente, como uma continuação narrativa de “Cavala”, seu primeiro disco.

Nessa perspectiva, é “Ninfomaníaca” que sintetiza toda a dinâmica temática e sonora do álbum. Não porque possui em sua estrutura toda a diversidade apresentada do trabalho, mas porque apresenta, sob a camada orquestral, a extremidade do encontro, o desejo absoluto. O trecho a seguir ilustra: “fill my eyes / please fall in my arms / please fill all my holes / and with your eyes you touch my sky / save my life”. “Ninfomaníaca” é desesperada, absolutamente humana.

É um álbum diverso que aponta para muitas direções e trabalha seus motivos de modo muito particular. Seja pela harmonia completamente tortuosa e não menos melancólica de “Guma”, seja pela aparição inesperada de “Minha Missão”, composta por João Nogueira e Paulo César Pinheiro, é um trabalho que aos mesmos passos biográficos se refere à trabalho de outros artistas. A já citada “Guma”, por exemplo, é inspirada em James Baldwin, já que adapta liricamente trecho do livro “O Quarto de Giovanni”, além de seu título homenagear um personagem de Jorge Amado, presente no cultuado “Mar Morto”.

Talvez a conexão mais pessoal seja em “Masc”, faixa que divide os vocais com Ana Frango Elétrico, e reflete sobre gênero e sexualidade de maneira muito instigante. A partir de uma instrumentação que flerta com o jazz, cantam“Inside my chest / a little boy scrolls a bunch of scenes / running through my veins / looking for the masc, em uma utilização bem-posta de algumas palavras de Milton Nascimento e Fernando Brant “Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão” em “Bola de Meia, Bola de Gude”.

São, portanto, muitas transas que Maria propõe neste seu novo trabalho, na medida em que funde seus desejos e impulsos à expressões da cultura brasileira da mesma forma em que as questões pessoais e memórias se apresentam na cabeça. É organizado a ponto de distinção, e elegantemente uma bagunça. Como deve ser.

Neste sentido, o mais divertido desse trabalho é presenciar Maria Beraldo sem vergonha de explorar a razão mais basilar de toda gente: o desejo, tesão, libido. Expressa de muitos jeitos, “Colinho” demonstra a força criativa da artista, que parece estar construindo uma obra que diz respeito, primeiramente, à sua vida, o que por consequência, significa sempre dizer respeito a todos nós.

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Maria Beraldo - Colinho
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