Letrux

Abrindo a caixa torácica: Um olhar sobre a potência criadora de Letrux

Letrux estava cansada. Na noite desse último sábado, 24 de agosto, a apresentação de seu novo espetáculo “Letrux Como Mulher Girafa” foi marcada por um visível cansaço. 

Texto: Mariana Kaoos*
Fotos: Patricia Almeida

Quero dizer, sua performance atravessou a todos os presentes e preencheu cada canto, cada espaço da Praça Tereza Batista, no Centro Histórico de Salvador. Afoito e festivo, o público se deixou envolver pelos novos – e magníficos – arranjos das canções que compuseram o set do show. A banda, voraz e cadenciada, mostrou para que veio. Navalha Carrera – guitarrista e co-produtora dos discos Em Noite de Climão e Aos Prantos -, com sua presença inebriante e envolvente, sempre pedia mais: som, dança, canto, volume, paixão. 

No vocais, Letrux deu o tom e convocou a todos para brincar com os possíveis deslocamentos de sentido que suas músicas provocam. Ou seja, na noite de sábado, 24 de agosto, quem esteve no Pelourinho para conferir a apresentação da mulher girafa, pode também adentrar no universo da fauna e escolher ser bicho. Zebras, hienas, leões, insetos, cobra, lagarto e jacaré. Tudo foi permitido e, dessa forma, sendo gente e sendo fera, todos fizeram do momento uma festa animalesca a céu aberto. 

Depois de dois shows sequenciados, com um mísero intervalo de 40 minutos entre um e outro, a noite se findou com aplausos, celebração e desejo de um breve porvir. O cansaço, no entanto, ainda estampava as falas da cantora. E não, não me refiro à exaustão física do ato de pegar estrada, alçar voo, vestir roupa, tirar roupa, dormir pouco e comer nada. Embora a banda tenha realizado três apresentações (uma em Belém, na sexta-feira, e duas em Salvador) em menos de 48 horas, ela segurou com maestria os passos, os pulos e a euforia do encontro musical. 

Letrux
Letrux Como Mulher Girafa no Pelourinho. Foto: Patricia Almeida

Contudo, o cansaço presente em Letrux e o cansaço que inicia este escrito se refere ao ato do esgotamento da insistência na existência artística. Por repetidas vezes, a cantora proferiu sinceros agradecimentos pela presença do público e por investirem – tempo, dinheiro, disposição – na cultura. Este, por sua vez, reforçou em uníssono: “artistaaaaaaaaaaaaaaaa”.

As dificuldades de sobrevivência – ainda mais, as dificuldades de permanência – de artistas independentes no cenário cultural é exaustiva. Sem um efetivo projeto político que entenda a cultura como potência criadora de significados e significantes e sem as ferramentas de apoio à difusão da cultura em território nacional, não há como se vislumbrar um horizonte em que a classe esteja equiparada com o suporte necessário para produzir, disseminar e democratizar o entendimento da cultura/arte como o que, de fato, ele é: um sistema de símbolos que interpretam, organizam e denunciam as contradições da vida em sociedade.

Esse sistema simbólico, por sua vez, traz consigo a urgência de se propagar aquele profundo e insubstituível conceito de representatividade. Esta, talvez, seja a palavra que melhor orienta e justifica a necessidade de maior investimento em cultura, a fim de que haja terreno para as disputas de narrativas, identidades e ideologias em ambiente diverso e plural ocorrerem.

“Não dá pra resistir, não dá pra depender, não dá pra acreditar – Não dá pra ser!”

Terry Eagleton, em sua obra, “Marxismo e Crítica Literária” afirma que entender a arte significa também compreender o processo social em que ela se insere. Ou seja, destrinchar as relações sociais e a mentalidade da época na qual ela foi produzida, uma vez que a obra está intrinsecamente ligada com os mundos ideológicos existentes. 

Assim como Eagleton, tanto outros pensam igual: Lukács, Antonio Cândido, Vygotsky e essa humilde escritora que vos fala. Dentro das minhas produções pessoais de verdade, afirmo categoricamente que não há um artista ou uma obra fora de sua época. E aí você pode me dizer, “mas a criação não se limita ao social ideológico, ela é filha direta da subjetividade”, e eu prontamente hei de concordar e acrescentar que a formação subjetiva, psíquica, emocional (e, quem sabe, até mesmo inconsciente) do sujeito provém da complexa relação do mesmo com os meios de produção e com os princípios ideológicos que permeiam sua vida em sociedade. 

Posto isso, parto para a ideia de que produção cultural artística é algo muito mais profundo que a obra em si. Nela, estão engendrados uma série de elementos que sentem e que falam sobre o mundo, sobre a política e sobre as gentes, tantas gentes por aí. 

O lançamento do disco Aos Prantos foi concomitante com a explosão dos casos de Covid-19 e do decreto mundial de estado pandêmico.  Se, para alguns, Letrux foi premonitória com tudo o que iríamos viver dali por diante, para mim ela se consolidou como uma artista extremamente sensível, crítica e antenada com os desmontes sociais que estávamos sofrendo na época. 

Em 2019, Jair Messias Bolsonaro chega ao poder com um projeto de extrema direita totalmente maniqueísta e segregador. Em 2 de janeiro de 2019 – segundo dia de governo -, entra em vigor a medida provisória 870/2019 que promove a redução de 29 para 22 ministérios. Esse ato dissolve o Ministério da Cultura (criado em 1985, cuja função era de ser um órgão regulatório e de promoção cultural) e funde a, agora, Secretaria Especial de Cultura, com o Ministério do Desenvolvimento e Ministério do Esporte. Por fim, a pasta da cultura ficou subordinada ao Ministério do Turismo. 

Letrux
No vocais, Letrux deu o tom e convocou a todos para brincar com os possíveis deslocamentos de sentido que suas músicas provocam.

Nessa mesma época, Letrux estava compondo as canções e produzindo seu novo disco. “Deja vu frenesi”, “eu estou aos prantos”, “sente o drama”, são algumas das músicas ferozes entregues ao mundo. Todas elas abordando temáticas do cotidiano e dificuldades de sobrevivência, como neste trecho de “abalos sísmicos”: “Acordei bem, mas o país não colabora e nem você”, ou até mesmo na primeira estrofe de “cuidado, paixão”:

“Cuidado, paixão

A mulher do mercado falou quando bem distraída eu quase esbarrei no corredor. 

Achei tudo tão caro

Mas voltei com um chocolatinho pra você”.

O disco de Letrux, Aos Prantos, veio como trilha sonora para embalar o ritmo de um Brasil dividido, violento, devastado, esgotado. Na época, a palavra de ordem era interdição. Estivemos restritos, confinados com os nossos finados – tanto de forma literal quanto simbólica.  As manifestações culturais migraram para o ambiente digital como válvula escapatória e se tornaram uma ferramenta potente para que não perdêssemos a esperança. A música, sempre no repeat, tenha sido, talvez, o maior espaço de acolhimento e tradução das angústias do período:

“Se organizar direito, todo mundo acha

Se organizar direito, todo mundo julga

Mas nem todo mundo jura

Nem todo mundo pensa

Nem todo mundo cura. 

Não deixa secar nem deixa magoar, não deixa!”

(Letrux, “Deja Vu Frenesi”)

Letrux, com mais de uma década de carreira independente, fez lives, se isolou no meio do mato, mudou-se da cidade do Rio de Janeiro e sobreviveu como pode. Suas músicas foram narrativas reais da tristeza coletiva. Não há como duvidar de que o álbum foi criado a partir da interseção e da sua sensível subjetividade com os acontecimentos sociais que inauguraram um período perigoso para a democracia brasileira desde o golpe de 2016.

Embora Aos Prantos seja de uma qualidade exímia, ele fala muito sobre o não, sobre o que se cala, o que se dói, o que se abisma e se abala. Nada mais atual, nada mais abrangente para a época do que essa obra. 

“Deixei sair as traças, deixei entrar as taras. Essa foi minha ação de graças”

Três anos após o boom de Aos Prantos, Letrux lançou em junho de 2023 seu mais novo álbum, Letrux como Mulher Girafa. Com 16 faixas, a cantora apresenta uma obra animalesca, selvagem e furiosa.

As composições são datadas de vários períodos. “Formiga”, por exemplo, é de 2020, uma canção melancólica, que fala sobre angústias e formas de resistência, escapatória. Algumas são mais atuais e trazem em si, ainda que de forma sutil, uma nova proposta que dialoga com a abertura democrática que conseguimos alcançar com a subida do presidente Lula ao poder e, principalmente, com a segurança que precisamos para nos autorizar a ter o ímpeto de soltar as feras e bancar os nossos próprios desejos. 

Se o Aos Prantos escancara sobre o não e as dificuldades daquele período, o Letrux como Mulher Girafa explora o sim e berra as contradições do nosso agora. Ele é um convite para liberar as taras, mostrar as garras, matar leões, ser comida por hienas. Suas canções gritam, berram sobre a dificuldade do viver, mas também apresentam possibilidades de se reinventar: “Pra gente aguentar a maluquice que é morar aqui nesse país, vou te dizer: Só delirando”, assim afirma “Teste Psicológico Animal”.

E como é que se começa a delirar? Certamente que, mesmo com o cansaço beirando a exaustão, se colocando no fronte de batalha por espaço, por investimento: em cultura, em arte, em denuncia das grandes, inexequíveis contradições Brasil afora, mundo adentro.

De certo que fazer uma ode aos grandes sucessos de artistas já consagrados, com ingressos caríssimos e espaços delimitados em estádios como a Fonte Nova, não traz nada de muito novo, nada de muito além. É preciso produzir, é imprescindível produzir, vislumbrar as bestas sociais e rasgar a carne de todas elas, demonstrando as feridas que corroem a cultura e a falta de apoio artístico. Letrux é revolucionária. Eu, como fã, aplaudo estarrecida sua força de aranha, seu olhar de girafa que a tudo vê, sua boca de hiena que ri ironicamente e que berra berra berra nos ouvidos do absurdo: “Capitalismo é croque, ainda bem que tem você”.

Se a cultura é um ecossistema animal, que sejamos os reis da floresta, ocupando e resistindo a toda essa selvageria. Ouçam Letrux, comprem ingressos, assistam aos seus shows. Brinquem com os leões. Digam sim.

* Mariana Kaoos (@marianakaoos), escritora do porvir. 

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