A cantora, compositora e arranjadora Angela Velloso é uma das revelações da música baiana, se destacando pelo timbre e interpretação bem particular. Numa trajetória entre o jazz e a MPB, ela prepara o segundo álbum da carreira, mas antes, ainda em 2023, soltou dois trabalhos que refletem os caminhos de sua música. O escritor Breno Fernandes escreveu sobre as obras para o el Cabong.
Por Breno Fernandes*
Natural de Salvador, Angela Velloso cofundou o coletivo Outras Vozes, que tenho chamado de o “Nós, por exemplo” da geração millennial, pela proposta de reunir em shows uma parte dos cantautores e renovadores da canção na cidade, contrastando e costurando seus estilos. Ademais, lançou dois discos nas plataformas digitais. O primeiro, Quase Esquecem, um EP, saiu em novembro de 2023. Poucos dias depois, foi a vez de Saga dos Ventos, assinado pelo Solana Star, duo que Velloso tem, desde 2018, com O Fatiota.
DEBOCHE & CHAMEGO
Quase Esquecem traz seis canções de autoria do músico e compositor Duarte Velloso, pai de Angela Velloso, que coproduziu o EP ao lado da filha. Algumas delas foram escritas em parceria com João Dude, e ao todo formam dois lados, o primeiro feito de canções de deboche, o segundo, de canções de chamego. E, seja em qual lado for, ouvir a voz de Angela Velloso me faz pensar: caramba, como ela canta! Canta muito. É uma continuadora da tradição de mezzo-sopranos performáticas, como Elis e Clara Nunes.
O disco começa com o samba “Desaforo”, retrato da insensibilidade da classe média (provavelmente branca) do Brasil. A música deu a Velloso o título de melhor intérprete no 20º Festival de Música Educadora FM. Na sequência vem “Carteirada”, outra canção narrativa, que às vezes me deixa com sentimentos ambíguos, porque a levada funkeada e super dançante, com efeito, conduz o monólogo de um filhinho de papai desbancando uma autoridade policial no que parece ser um cenário de blitz. Apesar do alerta de ironia no início da canção, eu consigo facilmente imaginar um playboy que a escuta e acha linda — pelo menos até o desenlace final, que de mim arranca uma gostosa gargalhada.
A terceira canção, “Água demais mata a planta”, me parece o grande hit do EP. Canção antiempáfia, antiarrogância, cantada com delicioso sotaque baianês (“dextá, sacana!”), consigo imaginá-la como a primeira música que a maioria das pessoas associarão a Angela no futuro, quando ela tiver o merecido reconhecimento nacional. O refrão é um desses versos que evocam a sabedoria popular e dão gosto de cantar em voz alta: “Eu te pergunto meu amigo/ pra que tudo isso?/ Água demais mata planta.”
“O vulto”, cujo vocal é dividido com Emma Araujo, cantora e atriz baiana que hoje vive em São Paulo, é carregada de doçura na harmonia cheia de sopros e na letra que encarna o vita brevis, carpe diem (“A vida não passa da vida/ com muita fé, um pouco mais/ Convém nos amarmos querida/ enquanto estamos em cartaz”). Ela dá início ao que seria o lado B do EP, com outra atmosfera, igualmente bonita, que permite à cantora brincar de scats em “Marajazz”, um convite a dançar junto, e a cantar em “Labirinto” uma história de amor fugaz mas intenso, que começa na Ribeira, com sorvete de sapoti, e se envereda pelas cidades da Chapada Diamantina.
Juntos, os dois lados do EP parecem nos fazer um convite: prestar atenção aos problemas e às injustiças do país, sem esquecer contudo que a vida é breve, é preciso desfrutá-la, sobretudo com amor. Ambas as tarefas parecem servir de referência ao que o eles oculto do título quase esquecem. Um eles bastante inferível, se considerarmos que as referências explícitas à pandemia da covid-19 que aparecem em “Carteirada” e “O vulto” dão conta de situar o álbum num determinado contexto sociopolítico. Mas ao mesmo tempo: um eles que a essa altura pode ser nós, a audiência do EP. Ou você tem conseguido fazer política e amor com a mesma intensidade?
BAIÃO PSICODÉLICO
Talvez você tenha lido essa história por aí: no verão de 87, as praias brasileiras, da Bahia ao Rio Grande do Sul, mas especialmente entre Rio e São Paulo, foram invadidas por latas e mais latas de maconha de origem tailandesa, que tinham sido lançadas ao mar para que a tripulação do navio que tentava transportá-las para os Estados Unidos não fosse presa.
O nome do navio? Solana Star.
Em homenagem a esse inusitado ícone do psicotropicalismo brasileiro, Angela Velloso e O Fatiota montaram em 2018 o duo homônimo, a fim de fazer experimentações musicais.
Solar dos Ventos é seu primeiro álbum. Com produção de Jordi Amorim, traz oito faixas compostas pelo duo junto a parceiros como Arthur Zucoloto, Isa Meirelles e João Caetano Brandão. Algumas são canções, outras são instrumentais, e o conjunto inteiro é uma mistura de jazz, rock, folk, baião, fanfarra e… bom, não importam muito os ingredientes, mas sim o resultado da receita: um disco delicioso, bonito do início ao fim.
A centralidade que a voz de Angela Velloso tem na construção desse efeito de beleza é incontestável. Dos vocalises que se ouve em “Natal baião” e “Solarium” ao modo como as letras são cantadas em “Rosa dos ventos” e “Arcos”, a vontade que me dá ao ouvi-las é sempre a de apertar o botão repeat. Imediatamente. No impulso de satisfazer a vontade que as músicas de Solana Star criam dentro da gente e que a própria “Arco”, em seu clímax, descreve tão bem:
“Faço ecoar
Da canção antiga
Presa na memória
Vou atrás do sol
Onde vou me achar
Onde hei de me encontrar”
*Breno Fernandes é escritor.