No último dia 22 de maio, Tiganá Santana fez o show de lançamento de seu novo álbum, Caçada Noturna, gravado em Serpa (Portugal) e lançado pelo selo sueco Ajabu!. O espetáculo, realizado no Teatro Sesc Casa do Comércio, teve formação inédita na trajetória do artista, com ele acompanhado somente por instrumentos de corda, com Ldson Galter (baixo), Leonardo Mendes (guitarra e violão) e Juninho Costa Junix (guitarras) formando a banda. Breno Fernandes conta como foi o show e traz sua perspectiva do álbum.
Por Breno Fernandes*
A noite, você bem sabe, tem simbologia tão vasta e antiga quanto a humanidade. Mas eu, que sou citadino do século 21, gosto de pensar nela como sinônimo de contemplação. A noite é quando podemos — embora cada vez menos — nos dar ao luxo — ou sentir menos culpa — de não produzir, de deixar de lado os problemas da vida, de nos desconectar. É ainda o tempo em que os casais podem se reencontrar, os amigos podem se reunir, as famílias, se reaproximar.
A contemplação também acontece nesses momentos, ela existe também em partilha — e, desde antes de descobrir que Caçada noturna, o novo disco de Tiganá Santana, foi gerado numa residência artística em Serpa, “no sertão do Alentejo”, como ele disse; desde antes de ver, no show de estreia da turnê de Caçada noturna, as intervenções visuais que exibem a lua exposta em sulcos, inflada no céu anil; desde antes disso, nas primeiras escutas do disco, já me vinha a imagem de serenatas ao luar, ou talvez para o luar; a imagem de amigos sentados ao lar livre, sob o céu estrelado, tocando e cantando de um jeito no qual o que se busca apreender é o próprio ato de contemplar. Talvez esse seja o estado de espírito que eu aconselho você a sintonizar para ouvir e para ver Caçada noturna.
O disco
Sétimo álbum de Tiganá Santana, 41, Caçada noturna foi lançado em maio de 2024 e me chama atenção por ser um álbum exclusivo de cordas. O baixo de Ldson Galter, ao lado as guitarras de Leo Mendes e do próprio Tiganá — os três, produtores do disco — constroem harmonias que evocam intimidade sem ser intimistas, que soam doces, mas não dóceis, e que balouçam os versos da mais legítima escola neobarroca afrorromântica, que só existe na Bahia.
Exceto por Das matas, escrita por Fabricio Mota, as letras do disco foram todas compostas por Tiganá. Costuradas umas às outras, elas me trouxeram à memória reiteradas vezes um ensaio cujo nome já não lembro, que dizia que, num mundo cada vez mais obcecadamente desvelado, picotado para caber nas lâmimas do microscópio, precisávamos nos dar de volta algum direito ao mistério. Eu sei, pode soar obscurantista, mas não era essa a intenção.
É como diz os versos de Coração ao largo: “Ai de quem nunca simpatizou com mistérios/ Que mistério é você”. Reconhecer no outro algo de misterioso, na contracorrente da interpretação rápida e esgotadora, sempre refém de rótulos e de simplificações, é a meu ver se permitir contemplar o outro na sua própria singularidade. É onde também as relações podem se construir em bases mais sólidas do que quando apenas projetamos no outro nossas fantasias.
Os versos de Amor simples conseguem exprimir essa ideia melhor do que eu: “Não questiono o carmim se posso amar você/ […] Constatações, impressões / Na pele é que se crê / Na palavra que mexer / E na ilusão que desvanece”. Esse encanto com o mistério, que nos faz suspender questionamentos, obviamente não diz respeito apenas ao outro. É uma postura diante da vida e de suas contradições, do paradoxo fundamental da existência, exposto em Partes de mim: “A vida é um xerê/ em que só viverá quem morrer.”
E não há nada de metafísico em tudo isso que digo, nem no que canta Tiganá, me parece. É sobre de fato estar atento à grandeza máxima e irredutível do mundo, a qual seria um erro ignorar, como canta a mãe ou esposa a quem Fabiana Cozza dá voz em O véu: “Meu menino pensa que é rei/ Faz de fechar olhos sua lei/ E fui eu que errei”. Ver o mistério é consequência de mantermos os olhos abertos, contemplativos. Olhos e ouvidos.
O show
A turnê de Caçada noturna estreou no dia 22 de maio, no Teatro Sesc Casa do Comércio, em Salvador, o mesmo palco onde, segundo contou Tiganá, ele debutou com o show do primeiro álbum, Maçalê (2010). Além de Ldson Galter (baixo) e de Leo Mendes (guitarra), que participaram da residência artística geradora de Caçada Noturna, somava-se à banda a guitarra de Junix Costa, numa impressionante polifonia e multifunção de cordas.
Reconhecendo a presença de amigos e de familiares na plateia lotada, Tiganá se sentiu à vontade para brincar com o ethos soteropolitano e comentar de seu temor de que fosse um dia tão chuvoso quanto o anterior, pois isso significaria um teatro vazio, embora ele próprio fosse compreensivo à vontade que as pessoas sentem de ficar em casa quando chove em Salvador. “É tradição, já registrada por Caymmi”, disse, cantarolando versos de Maricotinha: “Se fizer tempo bom amanhã/ Eu vou/ Mas se por exemplo chover/ Não vou.”
Além do repertório quase inteiro de Caçada Noturna, Tiganá tocou Vida código, Ogum de ronda e Le mali chez le carte invisible, canções de discos anteriores. Fez releituras excelentes de Inútil Paisagem, de Tom Jobim, e de Logunedé, de Gilberto Gil, e uma mesmerizante versão à capela de Alvorecer, clássico de dona Ivone Lara e de Délcio Carvalho gravado por Clara Nunes.
Na hora do bis, a surpresa. Tiganá havia mencionado os 50 anos do Ilê Aiyê em meio ao show, e ao final veio um pedido da plateia: “Canta Ilê!”. Não estava nos planos, mas a jam que o cantor e banda improvisaram de Ilê, se eu não gostasse de você (gravada em Vida Código) foi de um encantamento desses que a música misteriosamente conjura e que são tão bonitos de contemplar.
*Breno Fernandes é escritor.