Criolo faz versão de Chico Buarque, que retribuiu cantando os versos em seu show. A crítica torceu o nariz em mais um caso de viralatismo.
Em recente entrevista à revista Rolling Stone, Chico Buarque afirmou que “…a meia dúzia de canções – “Apesar de Você”, “Cálice”, “Deus lhe Pague” – essas, pra mim, ficaram datadas. Elas correspondem ao momento político e não fazem grande sentido hoje”. Coincidentemente, ou talvez provocado justamente pela declaração, o rapper Criolo resolveu retomar, nos últimos shows, sua versão atualizada do clássico, composta em 2010.
“Como ir pro trabalho sem levar um tiro/
Voltar pra casa sem levar um tiro/
Se as três da matina tem alguém que frita/
E é capaz de tudo pra manter sua brisa
Os saraus tiveram que invadir os botecos/
Pois biblioteca não era lugar de poesia/
Biblioteca tinha que ter silêncio,/
E uma gente que se acha assim muito sabida
Há preconceito com o nordestino/
Há preconceito com o homem negro/
Há preconceito com o analfabeto/
Mas não há preconceito se um dos três for rico, pai.
A ditadura segue meu amigo Milton/
A repressão segue meu amigo Chico/
Me chamam Criolo e o meu berço é o rap/
Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai.
Afasta de mim a biqueira, pai/
Afasta de mim as biate, pai/
Afasta de mim a coqueine, pai/
Pois na quebrada escorre sangue, pai.
Pai/
Afasta de mim a biqueira, pai/
Afasta de mim as biate, pai/
Afasta de mim a coqueine, pai./
Pois na quebrada escorre sangue.”
O veterano Chico Buarque retribuiu, agradeceu a homenagem e cantou em um show os versos de Criolo, mesclando com trechos da sua própria letra. Uma música que, segundo ele mesmo, não tinha mais sentido apresentar ao vivo, ganhou novo significado.
Criolo lançou um dos melhores e mais marcantes discos deste 2011 e já foi abraçado por Caetano Veloso, com quem já dividiu o palco cantando “Não Existe Amor em SP” na premiação anual da MTV Brasil. É mais um nome da música brasileira atual que prefere não se afastar das gerações anteriores. Há uma troca de gentilezas que mostra uma relação interessante entre gerações e mais do que isso, entre mundos. Chico Buarque já havia dito que a canção não tinha muito futuro e que o futuro estava no modo de fazer música mais direta, como o Rap. E eis que o rap retoma uma música antológica, deixada de lado pelo próprio autor, e a impregna de novo significado.
Veja também:
Os encontros marcantes da música brasileira em 2011.
Muitos questionam, e a crítica musical adora fazer isso, e dizem que as gerações mais novas precisam da benção dos medalhões para ser algo, a exemplo de Chico Science com Gilberto Gil, Daniela Mercury com Caetano, ou Paulinho da Viola defendendo o pagode baiano. Não precisam. Não precisam mais. Essa nova geração de sua forma já está consolidada, pelo menos artisticamente, não há necessidade. Aliás, essa música brasileira atual, que engloba desde Nação Zumbi, Otto, Wado, Los Hermanos, Cidadão Instigado a Tulipa, Jeneci, Baiana System, Karina Buhr, Do Amor, entre tantos outros, – muito diferente da nova música brasileira que algumas rádios procuram empacotar e vender – possui referências dos medalhões, incorpora informações dos anos 60, 70, mas não se satisfaz em reproduzir o modo deles de fazer música brasileira.
O melhor, fugindo desse papo de Máfia do Dendê ou que tais, esses artistas se relacionam com os medalhões, até absorvem a influência deles, mas se abrem para muitas outras da contemporaneidade. Internet, eletrônica, rap, música africana, tecnologia, misturas, quebra de fronteiras, rock, reggae, dub. Tudo se comunicando e cada um descobrindo caminhos dentro desse temporal de informações. A parcela dos medalhões é parte deste todo e uma relação de novos e veteranos é saudável, natural, e bem vinda, mesmo que nem seja imprescindível.
É curioso observar que essa convivência entre novatos e medalhões na música brasileira é criticada e os artistas costumam ser taxados de diversas formas, aproveitadores, traidores, dependentes, apadrinhados etc. Mas esta análise, no entanto, não ecoa em relação a música internacional. Ninguém se coloca contra RUN DMC com Aerosmith, Nirvana com Neil Young, ou Lou Reed com Metallica. Em alguns casos, o resultado destes trabalhos pode até ter sido julgado como ruim, mas não vemos crítica ao encontro de gerações, tampouco insinuações pejorativas quanto aos interesses que permeariam essa relação. Tratam como se só aqui não fosse permitido. Como se os medalhões no Brasil tivessem que ficar a parte do mundo atual, não devessem se intrometer com novos artistas ou até tivessem que se aposentar. E como se as novas gerações não pudessem transitar com os consagrados, não pudessem trocar experiências, informações e criar juntos.
Essa música atual cresce à margem do mercado, sem amarras, mas aberta e receptiva, menos preconceituosa. Essa visão tolhedora que se quer dar a nossa música é que continua aprisionada em divisões dos anos 80. Uma visão sectária e ultrapassada. Que os criolos e chicos continuem se provocando, se comunicando, contribuindo, criando.