Um dos maiores nomes da música brasileira em todos os tempos, Jackson do Pandeiro foi vítima de racismo em uma festa no Recife nos anos de 1950. Decepcionado ele deixou Pernambuco e prometeu nunca mais voltar. Conheça a história.
*Texto de Emannuel Bento (publicado originalmente no Twitter)
Filho de uma mestre de coco, José Gomes Filho nasceu em Alagoa Grande, na Paraíba, em 1919. Na década de 1940, quando o rádio já era um forte veículo de massa no Brasil, ele passou a trabalhar como cantor na Rádio Tabajara, em João Pessoa. Naquela época, as emissoras mantinham orquestras que mudavam de nome e integrantes com regularidade. Foi assim que Jackson chegou no Recife, em 1948, para a inauguração da Rádio Jornal – um projeto ambicioso com ondas curtas e médias que alcançavam todo o mundo.
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Foi na rádio que ele conheceu Almira Albuquerque, com quem formou dupla e casou em 1956. Foi também no Recife, capital com muita influência na mídia nordestina da época, que ele conseguiu se projetar nacionalmente, sobretudo com o compacto de “Sebastiana” e “Forró de Limoeiro”. Em 1955, Jackson já era astro nacional, mesmo indo pouco para o Sudeste. Ele tinha muito medo de andar de avião e as viagens de navio eram lentas demais para cumprir o contrato com a Rádio Jornal, do grupo do Jornal do Commercio.
Naquele ano, Jackson e Almira foram convidados para fazer um show na comemoração da vitória do Náutico em um campeonato de futebol. A festa foi na casa de Eládio de Barros Carvalho, que hoje dá nome ao estádio do time, os Aflitos. Eládio ocupou a presidência do Náutico entre 1948 entre 1954, sendo incentivador da transformação do campo para estádio. Na época da festa, realizada em uma casa entre a Tamarineira e Aflitos, ele já era ex-presidente.
Estava tudo correndo bem na festa, quando o jornalista Guerra de Holanda começou a assediar Almira verbalmente, além de apalpá-la. Ela tentou desviar, mas ele insistia. Jackson o advertiu, mas não adiantou. O marido logo exigiu satisfações, quando o jogador Cearense se meteu dizendo que era dele a responsabilidade do assédio. Jackson logo foi agarrado por quatro ou cinco homens que lhe aplicaram socos, cadeiradas e chutes. Almira também acabou se envolvendo, tendo as vestes inteiramente dilaceradas.
A pancadaria desproporcional (atletas profissionais X dois artistas, sendo um deles mulher) só parou quando uma pessoa deu um tiro pro teto e gritou: “Vocês querem matar os artistas?”. Foi a deixa para Jackson e Almira correrem. Eles tiveram de pular o muro para fugir. Um olho de Jackson saiu do globo ocular, o fazendo correr o risco de ficar cego. Eles foram para o Hospital José Fernandes Vieira, onde relataram o ocorrido para um investigador. Um inquérito foi aberto, mas a escassez do caso na imprensa dificulta a compreensão da conclusão.
A maior parte da imprensa do Recife abafou o caso, já que ocorreu na casa de um nome da alta sociedade. O DP, talvez por ser concorrente do grupo da Rádio Jornal, deu uma matéria sobre o escândalo no final de uma página (onde coletei parte da descrição da noite).
Já recuperado, Jackson do Pandeiro deixou Pernambuco prometendo nunca mais voltar. Ele e Almira foram recebidos como estrelas no Rio de Janeiro. Eles deram uma entrevista sobre o ocorrido que saiu na revista carioca Radiolândia, que cobria o sistema de celebridades das rádios.
Jackson chorou durante a entrevista: “Não tive o menor apoio, nem da rádio nem do jornal. Todos diziam que eu é que tinha provocado os acontecimentos”. “Eu sou a grande vítima da (Rádio) Jornal do Comércio”, registrou a revista, em página de foto inteira:
Vejam o trecho em que o repórter o pergunta sobre uma possível “saudade do Recife”: “Que saudade? Saudade eu tenho da minha terra, a Paraíba”.
Eles voltaram ao Recife no ano seguinte para um evento da Rádio Clube, concorrente da Jornal. De acordo com José Teles em reportagem para o centenário do artista, a ida para o Rio iria ocorrer de qualquer jeito. O caso apenas antecipou. Jackson era muito grande pro Recife.
Certa vez entrevistei Fernando Moura, biógrafo de Jackson, também para o centenário. Ele afirmou que aquele foi um caso de “sexismo”. Mas será que, naquele contexto de 1955, teriam assediado Almira na frente de Jackson se ele fosse branco e bem nascido como os demais da festa? Pior: teriam o espancado a ponto de quase perder a visão ou até morrer? Foi, portanto, mais um caso de racismo, machismo e preconceito de classe da aristocracia recifense.
Hoje o Náutico tenta constantemente reparar essa mancha em seu passado, sendo o último grande time de Pernambuco a permitir que negros jogassem pelo time.
Fontes: ‘Jackson dá adeus ao Recife’, de José Teles (JC), ‘Salve Jackson do Pandeiro!’, de Emannuel Bento (DP), arquivos da Revista Radiolândia e do Diario de Pernambuco (Biblioteca Nacional).
* Emannuel Bento é Jornalista. Repórter de cultura do Diário de Pernambuco e colaborador na Agência Retruco.