Resenha de quatro importantes discos da música brasileira contemporânea lançados em 2008.
Curumin – Japan Pop Show
Música brasileira? Nova? Criativa? Bem feita? Onde? Mais um bom nome prova que gravadoras, rádios e a indústria é que não querem enxergar. O paulista Curumin acaba de lançar o disco Japan Pop Show que mostra mais que temos tudo isso disponível aqui do lado. Um trabalho autoral, refinado, contemporâneo e de cara um dos favoritos a melhor álbum brasileiro do ano.
Japan Pop Show começa dando pistas que vamos ouvir um disco de DJ Shadow na melhor fase, com uma sonoridade repleta de elementos eletrônicos e a criação de uma ambiência quase etérea, com batidas quebradas e vários efeitos, incluindo vocais. É assim com “Salto no Vácuo com Joelhada”, prosseguindo em menor grau com “Dançando no Escuro”, que conta com participação do redescoberto Marku Ribas. Em “Compacto” ele abre outra janela e volta para o que vem marcando sua carreira, samba-rock (ou sambalanço) de alto nível, cheio de suingue e sem querer soar Jorge Ben, mas não nega a influência. Mesmo clima que volta em “Mistério Stereo”, bela canção que caberia sim num disco de Ben dos anos 70 tranquilamente, com seus violões e letra inspirada. “Esperança” segue um caminho parecido, daquele tipo de música que faz falta na humanidade, com clima alto-astral e palavras que deveriam ser repetidas como mantra “todo mundo quer amor e paz na Terra”.
Curumin é um daqueles caras que não tem vergonha de soar brasileiro nem de absorver influência internacional ao mesmo tempo. Sua presença no exterior começa a ser constante, ao mesmo tempo que entra de vez no circuito de festivais independentes pelo Brasil (Bananada, Calango e Mada), provando que tem um sotaque próprio, que dialoga tanto com o próprio país quanto com o resto do planeta. Em “Kyoto” (que conta com participação de nomes do rap californiano: o duo Blackalicious e o rapper Lateef the Truth Speaker, filho de integrantes do grupo de militância negra Panteras Negras) e “Japan Pop Show” mostra claramente isso, colocando influências de rap e dub, mesclados com sua sonoridade brasileira.
Em “Caixa Preta” convoca B-Negão e Lucas Santtana para um batidão bem produzido e ácido, como deveria ser o tal funk carioca. “Sambito”, com participação do skater Tommy “King of Corn” Guerrero, é quase um samba de gringo, cantado em japonês (referências a suas raízes japonesas recorrentes no disco) e português com groove, guitarras e efeitos. “Fumanchu” fecha com um samba-jazz de responsa, para ninguém duvidar da capacidade de se fazer um grande disco de música brasileira rico e bonito. Mas o que marca a música de Curumin é “Mal Estar Card”, suingaço politizado com direito Cristopher Love soltando as farpas diante da realidade nacional. Além da deliciosa “Magrela Fever”. Curumin é mais um nome que consolida o discurso que vivemos uma nova música brasileira, com sonoridade contemporânea, sem esquecer o que há de bom em nossa música, mas sem querer simplesmente soar como os velhos mestres. Um olho no retrovisor e a cabeça no horizonte.
Pink Floyd por Felix Robatto & Fabrício Jomar – ‘The Charque Side Of The Moon’
Em tempos de tecnologia e misturas, já está se tornando até comum um artista pegar um álbum clássico e reinventá-lo. Foi assim com Dangermouse e seu “Grey Album” um mash-up do “Álbum Branco” dos Beatles com o “Black Album” do rapper Jay-Z. Depois veio o DJ BC juntando Beatles e Beastie Boys. A tendência de misturar sons as vezes opostos, recriar em cima de obras já prontas, ganhou espaço e cada hora surge uma novidade. No Brasil os mash-ups já fazem sucesso em determinados meios, mas agora um grupo de músicos paraenses resolveu ir além e recriou um clássico do Pink Floyd em uma versão bem particular. A idéia surgiu da cabeça de Luiz Félix, guitarrista, percussionista e vocalista da banda La Pupuña, do Pará, que logo convidou o baixista da banda, Fabrício Jomar, para regravar o álbum “Dark Side of the Moon” com pegada paraense, a base de guitarrada, cumbia, lundum, brega e surf music. O resultado é impressionante. Estão lá todos os sons, os detalhes e a sequência das músicas do original, todo o clima, todas as invencionices, toda a viagem do clássico álbum de 1973, numa fidelidade até assustadora. Tudo certinho, como quase se fosse o original, mas é tudo com um tempero especial.
O disco foi gravado com a banda La Pupuña e um time de convidados que alteraram o DNA do disco e injetaram música e elementos paraenses no universo progressivo. Logo no início os sons do carimbó e dos barcos popopô fazem a introdução de “Speak to me Breath” para logo entrar ao mesmo tempo um irresístivel suingado e o espirito do Pink Floyd da década de 70. “On the Run” traz a competência de Pio Lobato e Guilherme Guerreiro do Cravo Carbono. Os sinos e o despertador de “Time” permanecem mas na verdade eles estão substiuídos pelos sinos da Basílica de Nazaré e pelo despertador de Luiz Félix. Cantada por Roosevelt Bala, vocalista do Stress, banda pioneira no heavy metal Brasileiro, com reforço da cantora de brega Denise Lima, a mais conhecida música do disco segue bem fiel até aos poucos se transformar num carimbó pelas mãos percussivas do grupo regional Os Baioaras. Sacrilégio? Pelo contrário, uma homenagem marcante e especial que trafega por todas as faixas do disco.
Quem imaginaria Gabi Amarantos, cantora de Tecnoshow, soltando a voz em uma vesão de “The Great Gig in the Sky”? Mais ainda, a reconstrução de outra clássica como “Money”, que começa alterada com uma base de percussão suingada, segue com as vozes da própria Denise Lima e da vocalista da banda Madame Saatan, Sammliz, e termina desconfigurada genialmente com solos de guitarrada de Mestre Vieira e um transe percussivo paraense. A viagem segue durante “Us and Them”, “Any Colour You Like”, que ganha uma percussão merengue, “Brain Damage”, com direito a risadas sampleadas de Fafá de Belém, e a incrível versão quase lambada de “Eclipse”. É como se o Pink Floyd tivesse gravado o mesmo disco de 35 anos atrás, mas que no sangue de Roger Waters e David Gilmour, além de rock progressivo, psicodelia, texturas sonoras, jazz fusion e art rock, corresse uma sonoridade latina.
Um quem é quem da música paraense atual, com convidados de estilos diversos abrilhatando um trabalho de alto nível que já chamou atenção de gravadoras estrangeiras que devem lançar o álbum na Europa. O “Charque” do título se refere mesmo a carne-do-sol, mas também a como é chamada a genitália feminina lá no Pará (daí a capa do disco). Um trabalho para ouvir e reouvir, pegar o original e ficar comparando, notando as diferenças e curtindo a criatividade dos músicos paraenses. Um dos lançamentos mais interessantes do ano desde já.
Fernanda Takai – ‘Onde Brilham os Olhos Seus’
Uma das melhores surpresas de 2007 foi o disco “Onde Brilham os Olhos Seus”, que traz a vocalista do Pato Fu, Fernanda Takai, em sua estréia solo provando ser uma das melhores cantoras do país numa recriação de canções gravadas por Nara Leão. Com produção do marido e também parceiro de Pato Fu, John Ulhôa, que também toca todos os instrumentos, o álbum conecta dois grandes momentos da Música Brasileira, dois universos ricos e criativos, a fase áurea de Bossa-Nova e Tropicália e o momento atual, onde produção, composição e interpretação ganham alta qualidade com nomes fora da mídia e do grande mercado. Fernanda Takai dá nova alma a clássicos, como “Insensatez” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes e “Com Açúcar, Com Afeto” de Chico Buaque e atualiza lindamente pérolas esquecidas, como “Seja o Meu Céu”, de Robertinho do Recife, um das melhores do disco. Ciente de suas limitações, assim como Nara, Fernanda explora o sentimento através de sua voz doce e pequena. O resultado se encaixou de forma perfeita ao repertório de Nara, como se as canções tivessem sido feito para ela, como em “Canta, Maria” de Ary Barroso e “Diz que fui por ai” de Zé Ketti, outro destaque do álbum. Ao todo são 13 músicas, com versão particulares, numa desconstrução que às vezes causa até estranhamento. Não há fidelidade alguma às versões originais e esse é um dos maiores méritos do trabalho. A bossa, MPB, choro e samba de nomes como Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, Erasmo e Roberto Carlos e Ary Barroso se transformam em versões discretas e caprichosamente modernas. Pop, rock, jazz, soul e em alguns momentos até um clima meio ambient music. Além de John, o disco conta com participações de Lulu Camargo, tecladista do Pato Fu, e Roberto Menescal, que gravou as guitarras de “Insensatez”. Em formato digipack e belo projeto gráfico, o CD vale a pena também pelo belo projeto gráfico, que inclui textos de Nelson Motta, letras das músicas e fotos. Co-produzido por Nelson Mota (que lançou a idéia do projeto), “Onde Brilham os Olhos Meus” foi eleito ‘Melhor Disco’ pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), na categoria popular e vai render alguns shows por algumas capitais, inclusive Salvador. Um daqueles discos que vale a pena ter em casa e que nos revela uma nova e bela faceta da carreira de Fernanda Takai.
Cidadão Instigado – ‘E o Método Tufo de Experiências’ (Slag Records)
Existem determinados sujeitos que são inquietos e instigantes em sua essência. Entre tantas alternativas de vida, alguns deles resolvem mergulhar no mundo da música e costumam presentear os ouvintes com boas esquisitices. O cearense Fernando Catatau é um desses caras. Desde que lançou os primeiros trabalhos de sua banda Cidadão Instigado ele corrompe as regrinhas da música brasileira. Na verdade nem se importa com elas. Depois de anos tocando alcançou o status de um dos músicos mais importantes e criativos dessa nossa música, pelo menos a do universo que mais importa. Em 2005, foi considerado pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo como o melhor compositor brasileiro do ano.
Responsável pela composição, produção, arranjos, voz e diversos instrumentos, Catatau acaba sendo a cara da banda, que criou em 1994 ainda em Fortaleza. Catatau já tocou ou toca com gente como Otto, Vanessa da Mata, Zeca Baleiro, Nação Zumbi, entre outros, mas é no seu próprio trabalho que mostra sua enorme capacidade de criação. Com o Cidadão Instigado (formado por Régis Damasceno, Rian Batista, Clayton Martin e convidados especiais, como Daniel Ganjaman, Maurício Takara e Izaar, entre outros), solta esse petardo que vem tirando do prumo quem já estava se contentando com as repetições, mesmo as mais recentes. “Cidadão Instigado e o Método Tufo de Experiências” altera os sentidos porque é simples. Desnorteia por utilizar elementos de nosso cotidiano, que mal utilizados costumam ser rejeitados, desprezados ou esquecidos. Elementos que aparecem nas letras, melodias, timbres, instrumentos, forma de cantar e que se juntam a elementos mais modernos, como sintetizadores, bateria eletrônica e efeitos.
Ao contrário do quem vem sendo alardeado, não é apenas um disco de música brega no novo milênio. O trabalho da Cidadão Instigado não é tão facilmente encaixável em um tipo de rótulo. Como no primeiro disco, Catatau e a banda subvertem e jogam para o alto qualquer tipo de tentativa de formatar sua música em alguma prateleira. Passeiam por sons psicodélicos, batidas eletrônicas, sonoridades setentistas, ritmos nordestinos e abrem a torneira de um universo particular para experimentar e contar histórias.
Há música brega na música que abre o disco, a belíssima “Te Encontra Logo” e na última “O Tempo”. Um brega moderno que traz uma conhecida sonoridade das mesas de bares. Dor de cotovelo embalada por um ritmo baladeiro com teclados, trechos falados, corinho e letras que falam de romances melodramáticos. “Estou morrendo e tenho medo de só pensar em você/ Te encontro logo a distância/ Antes dela te dizer que já é tarde demais”, na primeira, ou “mas o tempo é um amigo precioso/ que faz questão de jogar fora/ aquela mágoa vencida que ficou/ sofro por não ter pensado em te dar um desconto/ pus o rancor pra cuidar de tudo/ e vi que a vida mudou um segundo/ às vezes choro/ pois sei que não posso deixar que o passado invada meu mundo/ lembrei do perdão e vi nós dois construindo um futuro.” Preciosidade da última canção do disco.
Porém, não é só isso. Como definir “Os Urubus só Pensam em te Comer”, uma excêntrica música retirada da trilha sonora de um curta homônimo. Experimentalismo em cima de uma batida simples, teclados tortos e uma letra metafórica sobre vacas e urubus. Em “O Pobre dos Dentes de Ouro” uma levada mais latina que logo se transforma num samba de terreiro e muda completamente virando uma experimentação sonora com guitarras. Tudo para contar a história de um sujeito pobre que sonha com dentes de ouro para ficar lindo. A viagem em que mostra personagens comuns, mas que parecem invisíveis prossegue em “Silêncio na Multidão”. E ai ele mostra a estranheza de um lugar como São Paulo, que acolhe e assusta. A realidade da cidade grande, cruel e solitária. “Eu vejo as pessoas que passam por mim/ que falam, que ralam, que gritam/ em harmonia e solidão/ dói no coração ver meu povo silencioso”. Como se quisesse acordar quem o cerca do conformismo e passividade reinante. E segue ainda com o rock experimental alucinado “Calma!”, a estranha “O Pinto de Peitos”, o meio reggae-rock enviesado “Apenas um Incômodo”, que dá um recado nada conformado de um discriminado (nordestino em São Paulo? Cantor desafinado?), a bela “Chora, Malê” e a esquizofrênica a la Zumbi do Mato “Noite Daquelas”.
Catatau e sua trupe passeiam por sons experimentais e ousados. Encontram uma forma inteligente de falar de personagens comuns, problemas sociais, preconceito e de um universo simples, até cotidiano, mas que poucas vezes foi apresentado ao mesmo tempo de forma tão criativa e original. Criam sonoridades interessantes e desconcertantes, que aliadas às letras ousadas e criativas resultam nessa pequena obra prima.