Mais um dos discos baianos aguardados para este ano ganha destaque no el Cabong. Desta vez é o álbum de estreia da cantora, compositora e multi-instrumentista Livia Nery, com seu ‘Estranha Melodia.
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Por Juliana Rodrigues*
Pouco mais de dois anos após se lançar na cena musical independente com o EP “Vulcanidades/Garota Multicor”, a cantora, compositora, produtora e multi-instrumentista soteropolitana Livia Nery trouxe à luz, no último mês de junho, o primeiro álbum, ‘Estranha Melodia’. Produzido pela própria artista em parceria com Curumim, o trabalho foi viabilizado por financiamento coletivo. É também o primeiro lançado pelo selo Máquina de Louco, da banda BaianaSystem.
Trata-se de um disco que expande a proposta sonora já perceptível no EP de estreia de Livia. Ali o trabalho era marcado pelo uso de recursos eletrônicos para a criação de uma atmosfera ao mesmo tempo onírica e urbana, rica em texturas. Desta vez, a urbanidade dialoga com a brejeirice, o eletrônico conversa com o acústico e o pop expansivo se mistura a momentos de introspecção.
Coesão
Mesmo com essa proposta de explorar polos aparentemente tão opostos que compõem a subjetividade da artista, o trabalho mantém a coesão. Consegue alinhar faixas como “Cantoria”, que evoca a atmosfera de composições como “Morro Velho”, de Milton Nascimento, e músicas com grande potencial pop, a exemplo da dançante faixa-título.
Um dos destaques do álbum é “Vinte Léguas”, única faixa não-autoral entre as 13 que constam na tracklist. Trata-se de uma pérola de autoria de Evinha e Marizinha, vinda diretamente do álbum “Eva”, de 1974. Um daqueles obscuros brazilian nuggets que normalmente viram hype pelas mãos dos DJs gringos.
Felizmente, Livia, que além de tudo é pesquisadora musical e cria da rádio pública da Bahia, teve a manha de trazê-la à luz 45 anos depois. Sua interpretação tem estrutura semelhante à gravação original, com o toque pessoal dos sintetizadores e teclados. Há um discreto timbre de Fender Rhodes no arranjo, em lugar das cordas imponentes, que transpõe a música para uma tonalidade mais baixa.
Participações
Outros grandes momentos de ‘Estranha Melodia’ estão em “Macaca”. Uma espécie de canção de amor fora do clichê em arranjo synth pop com ecos oitentistas. E também na pulsante “Instinto”, precedida por uma vinheta que anuncia o clima da faixa. Duas das faixas do álbum são parcerias. “Pra Trabalhar”, composta com Tatiana Lírio e Johanna Gaschler, tem uma pegada de canto de trabalho, ao mesmo tempo modernoso e ligado às raízes. Enquanto “Quem Se Imaginou”, escrita com Ricardo Santana, levanta uma discussão política pertinente em meio ao lirismo da letra.
Em “Ave Sal”, uma canção sobre o mar, a guitarra marca presença pelas mãos de Edgard Scandurra, do Ira!. Em entrevista à revista Noize, Livia contou que o convite feito ao guitarrista paulistano acabou revelando um fato oculto sobre a relação dele com o mar. “Eu falei pra ele: ‘Pô, Edgard, você tão paulistano, da cidade e a gente te chamou pra gravar uma música sobre o mar’. E aí ele falou pra mim: ‘É, mas eu morei em Recife um tempo e eu gostava muito de ir pra praia. Adorava o mar’. E eu falei: ‘Taí, Edgard. Sabia que tinha algum elo pra você estar tocando nessa música que a gente ainda não tinha descoberto'”.
O vocalise presente na faixa, por sinal, guarda uma vaga relação com a sonoridade do rock progressivo dos anos 70. Há, ainda, as participações de Lucas Martins, Edy Trombone, Maurício Badé, Tatiana Lirio, Johanna Gaschler, Marcelo Galter, Israel Lima e Jorge Solovera.
Fora do comum
‘Estranha Melodia’ é encerrado com “Spiritual”, faixa em inglês na qual Livia despe-se dos beats e teclas e se apoia apenas em camadas de sua própria voz. Uma espécie de retorno para dentro de si mesma, depois de passear por tantas paisagens urbanas, litorâneas e rurais que contribuíram para formar sua personalidade artística.
É possível dizer, com toda a certeza, que valeu a pena esperar pelo álbum de estreia de Livia Nery. A multiartista alinha, de forma coerente, suas diversas facetas e influências para criar melodias que de fato se revelam estranhas, mas não na acepção negativa do termo. Em meio a camadas eletronicamente tecidas, o ouvinte se abre para o extraordinário, o desconhecido, e certamente foge do comum.
Ouça o disco:
Juliana Rodrigues é jornalista formada pela UFBA e pesquisadora musical. Atualmente, trabalha na Rádio Metrópole FM como repórter e escreve análises sobre música e áudio no blog Ouvindo Coisas. Produziu o radiodocumentário “Além do que se ouve – Sonoridades da MPB nas décadas de 1960, 1970 e 1980” como trabalho de conclusão de curso de Jornalismo, em 2018, e tem passagens pelas rádios BandNews (2017-2018) e Educadora FM (2015-2017).