Nessa entrevista, a cantora e compositora Luedji Luna fala da carreira, de Salvador, São Paulo, serenidade, racismo e de seu disco de estreia.
Aos 25 anos, Luedji Luna teve um ano abençoado. Foi indicada a três categorias no Prêmio Caymmi, ganhando como Revelação; foi contemplada no edital o Prêmio Afro 2017; foi selecionada no edital da Natura e lançou o primeiro disco, ‘Um Corpo no Mundo’. Mesclando música brasileira e africana, passeando por MPB, jazz, ritmos do congo, o batá cubano, samba, reggae, a soteropolitana tem vivido um turbilhão na carreira, se tornando um dos novos nomes mais falados da atual música baiana. Mesmo com tudo isso, ela leva com serenidade o momento, da mesma forma como canta e como parece encarar a vida. Em seu primeiro disco, como mulher negra, faz questão de carregar em sua música questionamentos e falar sobre pertencimento. A serenidade permanece no canto, versos e melodias, até mesmo quando trata do extermínio da juventude negra, das memórias da escravidão ou quando lança um olhar particular e belo sobre a diáspora de ontem e de hoje. Foi em busca de entender e conhecer melhor essa artista, que o el Cabong realizou essa entrevista exclusiva por e-mail que você pode ler abaixo.
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– Para a maioria, inclusive nós aqui de Salvador, você já surgiu há pouco tempo, já morando e tendo uma carreira em São Paulo. Mas você saiu daqui de Salvador do Cabula. Como foi essa sua trajetória, como começou a trilhar esse caminho da música?
Eu nasci no Cabula, me criei em Brotas, e hoje transito entre Salvador e São Paulo. Minha relação com a música inicialmente foi de muita negação, ela nunca esteve no lugar do deslumbre e do brilho, eu não me sentia especial por ser/querer ser “artista”, muito pelo contrário, me sentia culpada! Fui educada pra ser cientista e funcionária pública, pra disputar espaços de poder, era isso que eu queria desejar e conseguir ser, mas não era. Com 25 anos, finalmente, decidi aceitar o modo como meu espírito se expressava no mundo,eu sou um ser humano que canta e escreve, e é o que tenho feito desde então pra viver!
– A decisão de ir morar em São Paulo foi para investir na carreira? Como tem sido morar lá e manter a relação com a cultura baiana, tão presente em seu trabalho?
Depois de dois anos circulando em Salvador, fui pra São Paulo com uma mala e um sonho dentro, sem conhecer absolutamente ninguém , e sem um plano necessariamente, fui observando a dinâmica da cidade, e observando as entradas que ela me possibilitava, a internet foi um vetor importante também. Ir pra lá foi um risco que eu banquei, fui mostrando o pouco do material que eu tinha, e foi a partir da própria música que os caminhos foram se abrindo. A Bahia nunca saiu de mim, eu sempre me coloquei como cantora e compositora baiana, em primeiro lugar, e ter essa identidade me deu muito respaldo e respeito, a Bahia é escola, régua e compasso mesmo, hoje, ao contrário do que se poderia imaginar, sou mais presente, atuante, e mais reconhecida também, sinto Salvador agora, mais minha do que antes!
“A Bahia é escola, régua e compasso mesmo, hoje, ao contrário do que se poderia imaginar, sou mais presente, atuante, e mais reconhecida também, sinto Salvador agora, mais minha do que antes!”
– A gente sente um certo banzo em sua música, sente falta da cidade? Salvador é inviável para se manter uma carreira como cantora?
Esse banzo é outra falta, esse é um disco que fala de saudade ancestral, é um reflexão sobre corpos negros da diáspora e em diáspora, esse banzo é saudade de África, são as agruras do racismo, é a solidão em tantas dimensões. Salvador é casa, estou sempre por aqui, e acho que manter uma carreira na cidade pode ser possível, pra mim a dificuldade foi começar.
– Você traz em sua música, uma serenidade, uma leveza e uma espiritualidade muito forte. De onde tira essa força e essas inspirações? O candomblé faz parte disso? Ele parece ter forte presença em você e em sua música.
Eu tiro força do candomblé, mas minha inspiração é a vida, na verdade, a canção “Banho de Folhas”, autoria minha e de Emillie Lapa, é a única canção que trago diretamente essa referência. A música que a gente faz é reflexo do que a gente é, ou assim deveria ser, eu me considero uma pessoa leve e serena, muito em função de ter a possibilidade de viver do que amo, tudo isso está na música.
– E como tem sido manter essa leveza e serenidade num momento tão complicado no país, de regressões, um clima pesado e os preconceitos ainda mais exacerbados?
A minha serenidade vem da noção de que eu não vou mudar o mundo, nem resolver o racismo, eu preciso entender que eu sou apenas continuidade de uma luta anterior a mim mesma. Eu preciso ter essa tranquilidade pela minha saúde mental, pra continuar pautando o que eu acho importante, e fazendo o que acho importante. Eu não acredito que os preconceitos estão mais exacerbados, são os mesmos de sempre, na mesma medida, mas eles tão sendo questionados, o que antes era naturalizado, hoje gera tensão social, o que era silenciamento, hoje é debate, é conflito, é disputa pelo poder, e pelo espaço.
– Ser negra e mulher é ainda hoje ter que enfrentar um mundo machista e racista. Como encara isso com sua música? Acha que a arte pode abrir caminhos?
A gente vive numa sociedade racista e machista, e isso se reflete no mundo da música. Quantas mulheres pretas de sucesso, cantora e compositora você conhece? Quantas mulheres negras fora do samba têm visibilidade na mídia? Acho que arte pode abrir caminhos, mas também, políticas públicas, diversidade nas curadorias dos festivais, ações afirmativas, e etc.
“A gente vive numa sociedade racista e machista, e isso se reflete no mundo da música”.
– Como vê esse atual cenário de mulheres na música brasileira? Não só se consolidando como cantoras intérpretes, mas também como compositoras, produtoras…
Está presente no imaginário popular que a mulher é a cantora, a diva, mas nunca a produtora de saber e de discurso, se é difícil encontrar compositoras brancas na música popular brasileira, imagine negras. Existe um movimento no sentido de mudar essa lógica, vários coletivos e eventos estão surgindo no sentido de demarcar o lugar da mulher na composição, mas ainda assim, mesmos nesses espaços, as mulheres negras são minoria, e não estão protagonizando juntos às mulheres brancas. É necessário fazer o recorte ainda. Por essa razão que a Mostra Palavra Preta (Evento que promove a criação da arte negra, dando o protagonismo para mulheres negras) nasceu, um evento organizado por mim e Taitiana Nascimento, poeta, cantora e compositora de Brasilia, onde a gente reúne poetas, compositoras, e artistas visuais pretas do Brasil inteiro.
– A sonoridade de sua música remete a nomes como Mateus Aleluia e Tiganá Santana, que trazem uma Bahia mística, quase sagrada, que ressaltam a cultura negra, mas a menos estereotipada, menos profana. Esse é o caminho que você trilha?
Nunca pensei sobre isso, mas acho importante mostrar essa Bahia diversa. Eu só trilho um caminho que seja honesto, o importante, independente da sonoridade, é que seja um trabalho verdadeiro.
– Queria que falasse um pouco do disco, como foi a construção desse seu trabalho de estreia?
Produzido e mixado por Sebastian Notini – que também assina os últimos trabalhos de Tiganá Santana e o premiado “Mama Kalunga” de Virgínia Rodrigues – “Um Corpo No Mundo” foi gravado no Estúdio da YB (SP) e é composto por 11 faixas, algumas inéditas e outras já conhecidas do público. O disco é um olhar sobre mim mesma a partir do contato, ainda que disperso, com os imigrantes africanos em São Paulo. Eu acredito que seja a dissolução de diversas Áfricas, eu quis remeter essa ideia de travessia e deslocamento. Com músicos de diferentes nacionalidades, cada um trouxe elementos que resultaram em um disco fluído, com canções que transitam em diferentes referências onde nada é estanque. O que se pretendeu, na verdade, foi levar uma sensação de não-lugar!
A banda foi formada pelo queniano Kato Change (guitarras), o paulista criado na Bahia e filho de congoleses François Muleka (violão), o cubano Aniel Somellian (baixo elétrico e acústico), o baiano Rudson Daniel de Salvador (percussão) e o sueco radicado na Bahia Sebastian Notini (percussão), os arranjos foram pensados coletivamente, pois era importante que cada músico se sentisse parte do trabalho e não um simples executor. Essa junção resultou uma sonoridade sem fronteiras e de difícil definição. ‘Um Corpo no Mundo’ é um disco do mundo!
– A maioria das composições são suas, não é? São trabalhos que guardadas desde o começo de sua carreira? Como chegou nelas para o disco?
Sim, são canções novas, e outras de muito tempo, “Dentro Ali”, “Asas” e “Banho de Folhas”, por exemplo, são mais antigas. Eu fui escolhendo o repertório a partir da canção “Um Corpo no Mundo” que ´ single que dá norte ao disco, e das experimentações das canções nos shows.
– Como define o formato de sua canções, os arranjos, qual o seu processo para construção de suas músicas?
Eu comecei a compor a partir das letras, quando jovem, depois com uns 20 e poucos anos, eu ganhei um violão, e letra e melodia começaram a nascer conjuntamente.
– Como vislumbra sua carreira? Para onde deseja apontar ela daqui pra frente?
Esse é um trabalho faz sentindo pra mim e pra outras pessoas, e seguirei fazendo enquanto ele permanecer assim.