A grande novidade no Carnaval de Salvador em 2016 é uma volta ao passado, com aumento dos trio sem cordas . Depois de muito tempo, eles voltam a ser o destaque principal nos circuitos da festa. Além de nomes como Moraes Moreira, Luiz Caldas e Armandinho, Dodô & Osmar, que tradicionalmente já saíam com seus trios independentes, este ano, grandes estrelas da axé music também vão às ruas sem o aparato de cordão de isolamento e segurança particular. Nomes como Ivete Sangalo, Bell Marques, Carlinhos Brown e Saulo estão entre os confirmados para este ano. A mudança é fruto da queda das vendas de abadás dos blocos, mas também da iniciativa do poder público e da retomada das ruas pelo folião baiano indisposto a pagar para curtir a festa.
Com vários trios independentes, não vinculados a blocos, ganhando força nos últimos anos, tanto a iniciativa privada quanto o poder público passaram a olhar com outros olhos o chamado Carnaval pipoca. Exemplos como o trio sem cordas de Daniela Mercury e Saulo, o bloco de fantasiados Os Mascarados, o arrastão da Timbalada, as saídas do BaianaSystem e a pipoca de Igor Kannário, no ano passado, já vinham revelando que sem cordas o Carnaval era mais democrático e tranquilo para todos. O aperto e violência promovidos pelas cordas dos blocos estavam ficando inviáveis.
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Mesmo com a crise econômica obrigando a redução de gastos com a festa, apenas o Governo do Estado investiu R$ 10 milhões para garantir a saída de 65 trios sem cordas na festa. No ano passado, o mesmo governo havia investido ainda mais, cerca de R$ 13 milhões, financiando a saída de pouco mais que a metade desse ano. Foram 36 atrações, como Bell Marques, Margareth Menezes, Baby do Brasil, Timbalada, Ricardo Chaves e Mariene de Castro.
Mudanças
A mudança de foco gerou algumas críticas, nas últimas semanas, sobre o alto valor do cachê que seria pago pelo Governo do Estado a artistas como Ivete Sangalo e Bell Marques. O próprio governador, Rui Costa, negou o pagamento e afirmou que essas atrações mais famosas serão integralmente remuneradas pela iniciativa privada. “O Estado vai remunerar e apoiar as atrações menos famosas e a contratação dos trios elétricos”, disse.
Entre as empresas que devem bancar os cachês ele cita Bahiagás, Banco do Brasil, Caixa Econômica e a cerveja Itaipava. Além dos dois nomes alvos da polêmica também estarão entre os patrocinados os trios elétricos de Saulo, Banda Eva, Carlinhos Brown, Moraes Moreira, Margareth Menezes, Armandinho, Dodô & Osmar, Ricardo Chaves, entre outros.
A Prefeitura de Salvador também resolveu investir mais. Sem dizer quanto será gasto especificamente em trios sem cordas, o poder municipal anunciou que R$ 4 milhões estão sendo destinados exclusivamente para o pagamento de atrações, distribuídas em 222 apresentações, entre trios e palcos em bairros. É 15% a mais do que foi gasto em 2014, alega a assessoria da prefeitura.
Entre os nomes programados para os trios independentes estão Daniela Mercury, Igor Kannário, Saulo, Margareth Menezes, Márcia Freire, entre outros. Uma das maiores apostas dessa gestão para o Carnaval é essencialmente uma volta a antigos carnavais. O projeto, batizado como Furdunço, reúne atrações menos populares em trios elétricos menores e, claro, sem cordas.
Estrelas sem cordas
Para o governador, a prioridade em investir no chamado Carnaval pipoca é uma preocupação na valorização da cultura e história do Estado e no caráter de democracia e participação popular. “Os blocos privados e os camarotes são importantes por compor o conjunto da economia do Carnaval, mas eles não são democráticos, já que não permitem a participação de todos. Então o poder público está atuando no sentido de manter essa história”. Para ele, o apoio não tem a ver com uma suposta crise do axé, “tem a ver com a possibilidade de oferecer um carnaval democrático para a população”.
O cantor Bell Marques, um dos artistas escolhidos para a programação, considera a iniciativa dos trios sem cordas muito importante. “Acaba proporcionando a possibilidade de as pessoas brincarem sem cordas nas ruas, com os artistas que eles gostam”. Questionado por que apenas agora, num ano de crise econômica e em um momento de baixa da axé music, os grandes artistas partem para os trios sem cordas, ele diz que cresceu mais porque houve uma iniciativa do governo. “Não sei explicar direito por que eles estão fazendo isso. Sei que quanto mais trios sem cordas, mais artistas que não têm possibilidade de tocar em blocos tocam nas ruas. Isso é muito bom para os baianos e para os artistas também”.
“Os blocos privados e os camarotes são importantes por compor o conjunto da economia do Carnaval, mas eles não são democráticos, já que não permitem a participação de todos” – Rui Costa, governador da Bahia
Há bem pouco tempo, Bell não parecia muito disposto a se apresentar em trios sem cordas. Apesar de desde o ano passado ser uma das atrações contratadas pelo governo do Estado, até então sua presença no Carnaval se resumia a participações em blocos. Entre 2009 e 2014, por exemplo, ainda com sua então banda Chiclete com Banana, todos os seis dias de Carnaval eram ocupados por shows em blocos pagos e com cordas e em camarotes. Ivete Sangalo — que até agora só se apresentava sem cordas no tradicional arrastão da quarta-feira de cinzas — vai comandar um trio “liberado” pela primeira vez durante a programação regular da festa.
Mas nem todos apostam em um Carnaval sem cordas só agora. Entre as estrelas da Axé Music, Daniela Mercury e Saulo são nomes que já vêm apostando nesse modelo há algum tempo. A cantora aliás foi uma das primeiras e este ano sairá com trio sem cordas pela 17ª vez. Já Saulo, desde 2011, ainda na Banda Eva, apostou no formato. Este ano pela primeira vez ele não vai ser atração em nenhum bloco, dedicando-se inteiramente ao folião pipoca, com três apresentações (sexta, domingo e segunda de Carnaval) em trios sem cordas.
Crise do axé?
Bell Marques nega uma suposta crise na axé music como fator para a mudança. “Não existe isso de crise, de menos shows, de blocos vendendo menos, quem está falando isso está enganado”. Não é bem isso que mostram os números. A crise econômica colabora com a queda, mas é inegável que a quantidade de apresentações caiu para ele e outros grandes artistas da axé music. Segundo a agenda do cantor no site Carnaxé, que reúne agenda de vários artistas dessa música baiana de Carnaval, ele fez 69 apresentações pelo país em 2015, excluindo as participações e aparições em programas de TV. No ano anterior, foram 119 (contando também o período em que ainda fazia parte de sua ex-banda). A média de shows com o Chiclete, entre 2010 e 2014, foi de praticamente 120 shows por ano. Uma redução de mais de 40% no número de apresentações.
“Não existe isso de crise, de menos shows, de blocos vendendo menos, quem está falando isso está enganado”- Bell Marques
Ivete Sangalo e Claudia Leitte são outros nomes que ajudam a entender o momento. Segundo o mesmo site, até 2013 elas faziam entre 90 e 100 apresentações anuais. Ivete ainda manteve o número em 2014, mas o número de shows Claudia caiu para 50. Em 2015, essa queda no número de shows ficou mais clara, com pouco mais de 70 shows de Ivete e de 40 para Claudia Leitte. Isso sem falar que no auge da axé music, os shows em Salvador costumavam reunir de 20 a 30 mil pessoas. Nos últimos anos, eles passaram a ser realizados em locais menores, com preços nada populares e em Praia do Forte, uma requisitada praia a 80 km de Salvador. Um destes não teria reunido mais do que 500 pessoas numa apresentação de Bell Marques.
Se formos ver a presença das músicas dos artistas baianos ligados ao Carnaval nas rádios, os números também não são animadores. Desde 2011, nenhum artista ou música entra na lista de 50 mais tocadas nas rádios brasileiras e apenas seis entre as 100, nesses cinco últimos anos, nenhuma delas em 2015. Basta comparar também o número de discos vendidos emplacados pela axé music para perceber a mudança.
Abadás em queda
Um dado mais diretamente ligado a festa, e que também demonstra como os dias não são os melhores, é o referente a venda dos abadás. Apesar de alguns blocos anunciarem vendas esgotadas para alguns dias da festa e a crise e alta do dólar favorecer mais turistas na capital baiana, é fácil localizar muitos deles à venda em sites de compras coletivas. Muitos deles com grandes descontos. E são abadás de blocos famosos e com grande nomes da Axé Music como Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Harmonia do Samba.
No site Peixe Urbano, por exemplo, para acompanhar Claudia Leitte no Bloco Largadinho o folião pode desenbolsar R$ 360 por cada dia, sendo que o valor oficial é R$ 500 na segunda-feira e R$ 690 na terça. O bloco Meu e Seu, que tem como atração a banda Harmonia do Samba está sendo vendido por R$ 190 cada dia, sendo que o pacote com três dias sai por R$ 500. Já o Papa, com a banda Babado Novo, está vendendo 1 dia por R$ 115 e dois por R$ 200, sendo que até o fechamento dessa matéria apenas 27 pessoas compraram pelo site.
O bloco Coruja, um dos mais tradicionais, sai três dias. Apesar do primeiro dia com Ivete estar esgotado, nos outros dias ainda é possível comprar o abadá. No mesmo site de descontos ainda era possível para comprar o abadá do domingo, também com a cantora, pelo mesmo valor original de R$ 600. Três anos atrás o abadá era vendido por este mesmo preço, ou seja, sem nenhuma correção da inflação. Lembrado também que até então, os abadás costumavam esgotar em todos os dias e no mercado negro os preços subiam bastante.
“Acredito que muitos desses artistas não estão deixando de sair em bloco com cordas por filantropia ou por preocupação com o público. Também não vejo essa mudança como um desejo de repaginar o Carnaval ou de trazer mais democracia para a festa” – Márcia Castro
O mesmo acontecia com o abadá do Camaleão ou Nana Banana, blocos que tinham como atração a banda Chiclete com Banana. Ano passado, primeiro ano com Bell Marques à frente sem sua banda de origem, o valor do primeiro por dia era de R$ 800, mas chegou a custar R$ 2.900 para os três dias da folia, quando a banda anunciou a saída de Bell. Hoje para os três dias o valor está em R$ 2.450, uma deflação que vai na contramão da alta inflacionária dos últimos 12 meses.
O Nana Banana que chegou a ter um dia custando R$ 840 em 2014, agora sai no Peixe Urbano por R$ 130 cada dia, num desconto oficial de 35%. Ele que já foi um dos blocos mais caros do carnaval, chegou a cobrar R$ 1.690 para saída todos os dias. Isso tudo, sem contar que com os abadás esgotavam e os fãs pagavam muito mais pelos abadá inflacionados no mercado negro. Na véspera do Carnaval de Salvador de 2016, os dois ainda podem ser comprados na loja do bloco.
Fim das cordas?
Para o compositor Manno Góes, ex-integrante da Jammil e hoje no projeto Alavontê a música baiana está enfrentando um momento novo. “Nossa música voltou a ser sazonal e regional, o que é muito duro para a indústria do axé reconhecer. O axé vendeu 15 milhões de discos entre 1997 a 2000, mas retrocedemos. Assim como a bossa nova e o rock perderam espaço, a música baiana também está passando por isso, é um momento novo, mas nunca vai deixar de existir”. Em 2015, em sua página no Facebook. Góes já tinha vaticinado que “o bloco de cordas acabou”, e estimou que poucos blocos conseguiam se manter apenas com o pagamento do associado.
“Os carnavais dos bloquinhos sem cordas cresceram pelo Brasil, enquanto o daqui com cordas deu uma esvaziada. Os artistas se viram encurralados. O axé passou a virar algo retrô” – Márcia Castro, cantora
Para a cantora Márcia Castro, não dá para negar que existe a crise e que a posição de mudar para trios sem cordas é fruto da mudança do mercado. “Acredito que muitos desses artistas não estão deixando de sair em bloco com cordas por filantropia ou por preocupação com o público. Também não vejo essa mudança como um desejo de repaginar o Carnaval ou de trazer mais democracia para a festa”.
Segundo a cantora, os artistas e patrocinadores perceberam que existe uma crise. “Os carnavais dos bloquinhos sem cordas cresceram pelo Brasil, enquanto o daqui com cordas deu uma esvaziada. Os artistas se viram encurralados. O axé passou a virar algo retrô. O público migrou para outras festas, outros estilos musicais”. Márcia cita Saulo como uma das poucas exceções. “Desde que passou a ter autonomia do seu trabalho, ele tem essa filosofia de tentar oferecer algo diferente.”
A primeira iniciativa mais forte de investimento público no Carnaval pipoca aconteceu em 2010, quando o governo do Estado daquela época começou um projeto que colocava 20 trios na rua com atrações locais e convidados. Por estes trios passaram nomes diversos como como Elza Soares, Lobão, Autoramas, Gerson King Combo, Cascadura, BNegão e a própria BaianaSystem. O projeto, que durou três anos, apostava na diversidade e já sinalizava as mudanças para o mercado. O momento atual parece que é para valer e aponta para um caminho com um Carnaval mais democrático. Pode ser o futuro da festa, com ou sem crise.
Por Luciano Matos