Salvador vive uma sequência de fins de semana agitados e cheio de opções. Na verdade, 2013 foi marcado por isso. Uns com mais alternativas do que outros, mas, em geral, a capital baiana voltou a ter uma boa variedade de atrações para quem gosta de música. No entanto, é no verão que a coisa esquenta, literalmente: mais calor, mais festas, mais shows e mais opções, e parece até que o verão já começou desde o final de novembro. Dois fins de semanas seguidos nos quais foi impossível dar conta de tantos eventos interessantes, mas o el Cabong foi em alguns deles e conta o que rolou.
Uma das novidades desse ano foi a Prefeitura Municipal voltar a fazer algo pela cultura na cidade. Se, durante anos, só o Governo do Estado promoveu eventos relevantes, a coisa se equilibrou e ficou melhor agora com a prefeitura também tomando para si a responsabilidade. E, ainda que as políticas culturais não combinem ou sejam questionáveis em muitos momentos, é um passo para sair do marasmo, por parte da gestão municipal. Se o Governo do Estado com o tempo percebeu que precisava produzir menos e estimular que os produtores fizessem os eventos, a Prefeitura adotou a máxima da mão na massa e partiu para produzir grandes eventos. Chegou a anunciar um grande festival por mês, mas realizou apenas dois em 2013, o da Primavera, no Rio Vermelho, e o do Samba, nos dias 29 e 30 de novembro e 1º de dezembro, na praça do Santo Antônio Além do Carmo.
Neste último, atrações de peso nacional, mescladas com importantes nomes do samba baiano e grupos tradicionais de chula e samba de roda se revezaram no palco montado na praça. De cara, o público, que compareceu em bom número a todos os dias do festival, se deparou com um palco tímido e um som aquém do que um evento do tipo pedia. Problemas constantes, equalização ruim, volume baixo afetaram algumas das apresentações e escancarou o que um modelo de licitação provoca em eventos realizados pela iniciativa pública, já que as empresas ganham normalmente pelo preço, não pela qualidade do som.
A atmosfera no local parecia superior a isso, e o clima era mesmo de celebração ao samba, com crianças, adultos, idosos, gente do samba, os chamados “alternativos” do Rio Vermelho e uma diversidade de públicos comparecendo ao evento. E taí um dos maiores acertos em se fazer esse tipo de evento, ocupar as praças e ruas numa cidade onde parte da população, especialmente a mais rica, decidiu não conviver com seus problemas. Em três dias com shows de médio a grande porte, tudo pareceu dar certo, só precisando de alguns ajustes. Apesar disso, há de se ter atenção para Salvador não seguir o caminho de Recife, que com um volume tão grande e de forte impacto de shows gratuitos, acabou praticamente inviabilizando produtores e casas de shows a produzir eventos pagos durante todo o ano.
Com a curadoria feita pelo maestro Letires Leitte, o Festival do Samba teve uma programação diversa e até certo ponto ousada. Inserir o grupo É o Tchan num evento com Paulinho da Viola e Elza Soares era uma clara tentativa de diminuir a distância entre o samba mais clássico e o samba baiano mais pop e mais próximo da música de carnaval. E olha que a proposta inicial era que o Harmonia do Samba estivesse na programação. Foi até melhor que não, pois é provável que o público presente fosse muito maior e a praça não desse conta.
O ponto alto do festival foi, sem dúvida, a apresentação de Paulinho da Viola, fechando uma tarde ensolarada de domingo com um dos melhores repertórios de samba que alguém pode apresentar. Quase todo focado em sua própria carreira, com sucessos arrebatadores como ‘Argumento’, ‘Foi um Rio que Passou em Minha Vida’, ‘Dança da Solidão’, ‘Sei Lá, Mangueira’, ‘Pecado Capital’, Paulinho fez um show comovente, mesmo com o som querendo atrapalhar. Com sua tranquilidade e elegância, acompanhado de uma banda de primeiríssima, formado em grande parte por veteranos músicos, o carioca foi superando as falhas e desfilou em pouco mais de uma hora e meia uma série de sambas imortais de vários períodos da carreira.
Elza Soares teve ainda mais dificuldades com o som. Já passava da metade do show quando dava pra ouvir a banda de forma adequada. Elza, aos 76 anos passou a maior parte do show sentada numa cadeira, já não mantém a vitalidade de alguns anos, o que é compreensível. Assim mesmo, consegue levantar, jogar pra plateia e soltar a voz. Pena que parte do repertório do show se ateve a versões de sambas mais óbvios e que a banda insira modernidades de forma forçada. Ok, bacana que Elza queria soar mais contemporânea, mas um DJ que faz mais caras e bocas é desnecessário. Ao contrário de Paulinho, que apostou no simples e acertou em cheio com a grandiosidade de sua música, Elza aposta no mais, em rechear o show com extras, tornando a música menor. No final, emocionou a muitos, mais por verem aquela senhora do alto de suas mais de sete décadas com uma história fantástica cantando e pelos saudosismo de sambas imortais, do que pela música em si.
A surpresa, no entanto, foi fazer um retrospecto e perceber melhor a importância do É o Tchan no decorrer do show do grupo. Durante os trinta minutos iniciais a sensação era de como todo mundo que criticou a banda durante o sucesso dos anos 90 havia sido injusto. Beto Jamaica, “Cumpade” Washington e banda mandaram uma sequência matadora dos hits do grupo quando ainda era Gerasamba. Aquilo que seria a continuação lógica e modernização do samba de roda do Recôncavo Baiano. Samba baiano de alta qualidade, com uma banda competente e num clima de festa e em alto flerte com a malícia baiana.
No entanto, quando a banda retomou os hits dos anos 90, ficou clara a diferença. A sonoridade mais pausterizada, com arranjos menos cuidadosos, o ritmo perdendo força e as letras apelativas, sem falar das famosas dançarinas apareceram no palco, para deleite do público, que se diga. Ficou bem clara a diferença de propostas da banda em sua história nos dois momentos do show. A apresentação teve ainda outros momentos memoráveis que ajudaram no saldo positivo, como o sensacional potpourri com música de Edson Gomes (‘Samarina’, ‘Malandrinha’ e ‘Camelô’) em ritmo de pagode, uma sequência em homenagem ao Ilê Aiyê, além de uma surpreendente referência a Vinicius de Moraes, com ‘Samba da Benção’.
Afrofuturismo e rock no Zen
Outro evento que merece destaque nas últimas semanas é bem diferente do festival. Com preço mínimo de R$25 e reunindo nomes da cena independente brasileira e baiana, o Inspire Music apostou em abrir as portas do Zen Dining, casa de shows acostumada a shows de artistas de sertanejo universitário, para um novo público. Depois de algumas edições, o evento recebeu o carioca BNegão e o Bembatrio num fim de semana e Cascadura e o Autoramas no seguinte.
O Bembatrio fez seu costumeiro show pra cima, extremamente dançante, com DJ Raiz mandando as bases, enquanto Russo Passapusso e Fael 1º iam destilando versos e prosas para todos os lados. Desde as músicas próprias, já hits em seus shows, como ‘Melô do Vatapá’, ‘Bola na Rede’, a mescla de referências que vai de clássicos da música baiana até dancehall, samba reggae, ragga, repente, miami bass e dub. Chama atenção é a barreira de belas mulheres que a banda sempre forma na frente do palco.
Seguindo um formato parecido, com um DJ e um trompetista, Bnegão fez em seguida outra grande apresentação. Exímio MC, o carioca apresentava seu show como Afrofuturismo, um passeio pela música negra universal. E foi isso mesmo, tome-lhe reggae, funk, dub, samba, afrobeat, coco, funk carioca, rap, ragga, dancehall e por ai vai. Destilou os petardos de seus dois discos, ‘Funk até o Caroço’, ‘Reação (Panela II)’, ‘Essa é pra Tocar no Baile’ e sensacional ‘Dança do Patinho’, que levou o público ao delírio. Mas também trafegou por todos os estilos citados acima com referências e músicas de nomes como Bezerra da Silva, Martinho da Vila, Jovelina Pérola Negra, Almir Guineto (o sucesso ’Caxambu’), Max Romeo (com ‘Chase the Devil – Out of Space’), Raul Seixas (com uma versão muito boa para ‘Fim de Mês’), Chico Science & Nação Zumbi (A Praieira), além, é claro, de algumas do Planet Hemp. Pra terminar, uma de, segundo ele mesmo, “o maior de todos”, Dorival Caymmi. Bnegão ainda chamou o Bembatrio para juntos fecharem o show.
O projeto teve no domingo seguinte, o último (dia 8), outro encontro entre baianos e cariocas, agora Cascadura e Autoramas, com abertura de Ricardo Caian e Os Beduínos. Os cariocas já vieram com mais frequência à cidade, mas sempre que aparecem é para mostrar porque são ainda a melhor banda de rock do país. Falam mais uma vez em morte do gênero, que no Brasil não tem boas bandas e todo aquele papo. Se depender do mainstream vai ser assim mesmo, mas, se depender do Autoramas vamos ter sempre a certeza de um showzaço. Rock é diversão e pouca gente sabe fazer isso tão bem quanto Gabriel Thomaz, Bacalhau e a linda Flávia Couri em cima do palco. Formação enxuta e som poderoso, músicas dançantes, letras divertidas e uma sequência de hits que é para poucos. Desde músicas feitas por Gabriel e sucesso em outras bandas, como ‘I Saw You Saying’ (gravada pelo Raimundos) e ‘1, 2, 3, 4’ (de uma banda antiga de Gabriel, o Little Quail) até os da própria banda, de várias fases, ‘Carinha Triste’, ‘Fale Mal de Mim’, ‘Você Sabe’, ‘Paciência’,‘Mundo Moderno’, ‘A 300 Km/h’ e ‘Abstrai’. Showzaço com direito a biz e a versão instrumental de ‘Blue Monday’, do New Order.
Na sequência, o Cascadura, sem o percussionista que vem se apresentando com a banda, fez outro grande show, com músicas de todas as fases da banda, com destaque para as dos discos ‘Bogary’ e ‘Aleluia’. No final Cascadura e Autoramas tocaram juntos, numa sequência com ‘Eu Sou Terrível’ (Roberto Carlos), ‘Billie Jean’ (Michael Jackson) e ‘Day Tripper’ (Beatles), com os músicos se revezando nos vocais e instrumentos, clima de jam, clima de festa e um ótimo final de noite de domingo.
Outro evento teria início na última sexta (dia 6), o Ponto Fiac, algo como se as festas do festival de artes cênicas de mesmo nome ganhassem agora vida própria, num evento a parte. Pra começar uma atração até então inédita em Salvador, os paulistas do Bixiga 70. Se em disco eles agradavam, no palco a festa é muito mais interessante. Dez músicos, entre naipe de sopros com três músicos, dois percussionistas, um batera, um baixista e dois guitarristas, sendo que um reveza no teclado, produzem um som vigoroso, forte e dançante.
Mesmo sendo instrumental, a banda consegue manter o show aceso, tanto pela própria música vibrante, quanto pela performance e presença de palco. É evidente que na Bahia a festa teria sintonia imediata com o público, afinal música com influência africana e brasileira tem tudo a ver com Salvador. Não deu outra. Com músicas próprias, além de “Deixa Gira Girar”, clássico famoso pelas vozes dos Tincoãs e uma versão sensacional e totalmente adaptada de ‘A Morte do Vaqueiro’, sucesso de Luiz Gonzaga, fizeram um dos showzaços da semana na cidade.
O dia seguinte foi um dos mais concorridos de Salvador em muito tempo. Mais ou menos ao mesmo tempo teve Badi Assad, Baiana System, show com grandes nomes do samba baiano (Riachão, Juliana Ribeiro, Antônio Carlos e Jocafi, Raimundo Sodré e Roberto Mendes), a festa Rockabilly Sessions (com The Honkers e outras atrações), Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta, entre outros eventos. Antes, ainda na tarde, um projeto novo na Mídia Louca, com a banda Falsos Modernos , com seu bom pop-rock, botando o som e equipamentos quase na rua e tocando para quem passava, os moradores locais e para o público que compareceu. A ótima iniciativa, que pode ser seguida por outras bandas em outros locais, serviu para mostrar que boas ideias e um pouco de esforço podem fazer coisas interessantes movimentarem a cena. O projeto, que tem o nome de Mudernage, vai ser realizado mensalmente.
Entre tantas opções, o el Cabong esteve na noite de sábado no show de Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta, no Portela Café. Terceira apresentação desde o retorno do grupo, desta vez com diversos convidados especiais: Ricardo Caian, Lia Lordelo, Luiz Brasil, Giovani Cidreira, Paquito, Vince de Mira e Andrea Martins. Abrindo com umas das duas músicas novas do show, a banda mostrou seu repertório cheio de hits locais, com destaque para ‘Vidinha’, repetida no biz, ‘O Drama’, ‘Noite’, ‘O Circo’ e ‘Aquela Dança’. Mais solta, a banda fez um show ainda melhor ao que marcou o retorno aos palcos. E, para variar, um bom público em sintonia, meio até que em transe, com as músicas. Mais um showzaço do fim de semana.
Na quinta (dia 5) pouca gente soube e pouca gente viu mais uma bela apresentação da Orkestra Rumpilezz, desta vez no Terreiro de Jesus, em show aberto ao público. Com direito a homenagem a Nelson Mandela, o grupo fez mais uma de suas belas apresentações unindo jazz e música afro-baiana. A noite teria, no entanto, um outro evento que estreava na cidade, o Red Bull Soundclash, em sua quarta edição brasileira. Realizado no Barra Hall (quem sente falta de uma casa de show estruturada e com um bom tamanho olha aí), o evento promovia um duelo entre Luiz Caldas e Buchecha. O pai do axé contra o rei do funk melódico carioca.
A ideia é muito boa e funcionou. Dois palcos, um em frente ao outro, com as bandas se revezando em etapas do duelo. Primeiro round com cada artista e sua banda interpretando um cover, no caso, ‘Não Quero Dinheiro’, de Tim Maia. Em seguida, segunda round, com um artista começando a tocar uma música própria e a outra terminando a canção. No terceiro round, as bandas eram desafiadas a tocar três músicas de seu repertório, só que em estilos diferentes, no caso, reggaeton, cumbia e kuduro. Par finalizar, cada artista recebeu um convidado especial, Gabriel O Pensador com MC Buchecha, e Saulo Fernandes com Luiz Caldas. Divertido e diferente, o duelo teve um resultado unânime, Luiz Caldas ganhou fácil todos os desafios, que eram votados pelos gritos do público. Seja porque estava em casa, seja porque é um artista muito mais completo do que Buchecha, foi covardia.
Veja aqui agenda do que ainda vai rolar neste verão e galeria de fotos abaixo: (Fotos de divulgação de Leonardo Monteiro, Bruno Barretto, Leonardo Pastor e outros)