Rachel Reis

Em ‘Divina Casca’, Rachel Reis afia o discurso na busca por ser ela mesma

RACHEL REIS
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3.9

Uma das revelações brasileiras no pós-pandemia, a cantora e compositora baiana Rachel Reis lança o sempre desafiante segundo álbum. Julli Rodrigues traz suas impressões sobre Divina Casca, que traz uma versão audiovisual para cada uma das faixas.

Por Julli Rodrigues

Após conquistar ouvidos, corações e o respeito da crítica com Meu Esquema (2022), seu álbum de estreia, a cantora e compositora feirense Rachel Reis resolveu mergulhar mais fundo, explorando novas camadas de si mesma e trazendo um olhar mais crítico e ácido sobre o mundo ao redor. Divina Casca, lançado nesta terça-feira, 15 de abril, é descrito como “um trabalho visceral que exalta sua jornada de construção e reconstrução enquanto mulher, artista e ser humano”, segundo o material de divulgação. O disco inclui os singles já lançados, “Ensolarada” (Rachel Reis/RDD) e “Deixa Molhar” (Rachel Reis/Bruna Magalhães), além de uma nova versão para “Caju” (Rachel Reis), feita originalmente para a série “Cangaço Novo”, da Amazon Prime Video.

Em diversos aspectos, o novo trabalho representa mais uma ruptura do que uma continuidade em relação ao Meu Esquema, indicado ao Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa”. Por um lado, a sonoridade das quinze faixas caminha mais em direção à MPB do que às influências do pagodão e do arrocha, embora elas ainda estejam presentes. Por outro, a caneta de Rachel passa a escrever sobre uma maior diversidade de temas: além do amor, da festa e do desejo, a artista também homenageia suas referências musicais e fala de amadurecimento, mercado, indústria fonográfica e dores de amor, com uma pegada de “sangue no olho” nunca antes vista. O discurso, que é uma de suas maiores forças, está cada vez mais afiado. Ainda bem.

Confortável na casca, mas não em caixas

Não tem como esperar algo diferente de um álbum que já saúda o ouvinte logo nos primeiros segundos com o verso “Não há ninguém que eu queira ser além de mim”, da música “Casca” (Rachel Reis). Essa percepção, segundo a artista, vai além de uma visão puramente pessoal. “Tanto de uma casca de amadurecimento e aprendizado, quanto da minha figura mesmo, porque é um processo pra gente se amar, pra gente gostar da gente. Tentei trazer essa coisa do amadurecimento dessa casca. É uma evolução constante, são quase quatro anos, eu não vejo o tempo passar porque eu acordo com música. Tem a parte do trabalho, da construção, de me entender enquanto artista”, disse Rachel, em entrevista à autora desta resenha durante a audição do álbum em Salvador.

De fato, o desejo de “ser ela mesma” é expresso também quando a cantora se propõe a refletir sobre a indústria fonográfica, como ocorre no reggae-rap “Tabuleiro” (Rachel Reis, Don L, Iuri Rio Branco, Rincon Sapiência): “De que futuro é esse que tu tanto fala quando eu sou presente? (…) E eu me visto com minhas armas para desviar de tanta baboseira. Sabe o que eu quero mesmo ser? Ser genuína comigo, verdadeira comigo”. Os versos dos convidados Don L, Nêssa e Rincon Sapiência só ratificam esse discurso: nada de se moldar para caber no que se espera, nada de criar pensando somente em “algoritmos e hits do verão”. Rachel não está disposta a entrar em caixinhas, e ao que parece, tentaram colocá-la em muitas.

A cantora e compositora também coloca na mira aqueles que creem em uma Bahia musical folclorizada e querem se aproveitar desse universo simbólico sem pertencer a ele. Com acidez e ironia na medida certa, ela dá o recado no pagodão “Apavoro” (Rachel Reis), que traz a participação do grupo Psirico: “É que tem mel que só na Bahia tem, e há  quem venha aquidizer que é quase um de nós pra ver se a faísca pega e acende também”. Mesmo com o “tiro” certeiro nos “falsos baianos”, a faixa tem suingue e um refrão chiclete que pode até fazer a crítica passar despercebida. Mas é só ouvir com atenção pra não tomar o apavoro.

Até que nem tanta serenidade assim

Meu Esquema nasceu como um álbum “sincero, manso, suado, sereno e afetuoso”, como a própria artista definiu em postagem nas redes sociais dois meses após o lançamento. Um álbum majoritariamente sobre amor. Mas agora, a Rachel de Divina Casca se permitiu deixar a mansidão e a serenidade de lado para falar do que sente. Um viés que já se anunciava de forma sutil em “Consolação” (Rachel Reis), faixa do primeiro álbum, mas desta vez irrompe de modo cortante e arrebatador. Com a faca nos dentes.

No coração da mulher que sofreu e cresceu, não há mais espaço para metáforas ou construções elaboradas do tipo “não vou ceder meu ombro pra choro, nem levantar minha saia pra servir de abrigo”. Agora ela é direta e mordaz, sem piedade, mas sempre com a autoestima lá no alto, sem medo de se afirmar como “O Maior Evento da Sua Vida” (Rachel Reis). Tal qual Duda Beat em “Na Tua Cabeça”, Rachel também achou o jeito dela de dizer: você não me quis, mas também não me esqueceu. “E eu torço bem para que com ela você seja alguém a quem admirar / Vai beijar ela, exibir ela, andar de mãos dadas com ela / Só lembra de esquecer de mim”, diz a canção.

Toda essa sequência de tapas na cara vem embalada em uma sonoridade de samba-rock e guitarras psicodélicas, algo tão envolvente quanto o português Abílio Manoel cantando “Luiza Manequim”, porém com mais “molho”. Um belo jeito de transicionar do “vê se lembra de mim” para o “só lembra de esquecer de mim”. E não para por aí: em “Furacão”, parceria com Mariana Volker, ela consegue ser ainda mais visceral, dizendo com todas as letras que vai “destruir” e “aniquilar” quem lhe magoou. Um tiro doeria menos.

Teria Rachel ficado mais amarga? Ela garante que não. “Eu acho que o Divina Casca é o irmão mais velho do Meu Esquema. Eu sinto que é um álbum um pouco mais maduro. Eu ainda trabalho o amor romântico, ainda trago a doçura em algumas músicas, mas ao mesmo tempo vem aquela visão um pouco menos fantasiosa sobre as coisas”, disse, em entrevista. De fato, o lado doce da casca aparece em faixas autorais como “Aquele Beijo”, “Sal da Pele”, “Caju (Noda)” e “Noite Adentro”, sendo esta última pontuada por uma esperta citação ao tema principal do filme “The Good, The Bad and The Ugly”, clássico de Ennio Morricone.

A infinitude que trouxe Rachel até aqui

Por sinal, referências (e reverências) abundam em Divina Casca. Pra quê melhor exemplo do que uma faixa chamada “Jorge Ben” (Rachel Reis), que coloca o ícone da música brasileira como medida de comparação do que o amor representa, e de quebra emula sua sonoridade com competência? “Jorge Ben” soa perfeitamente como uma música saída do álbum “A Tábua de Esmeralda” (1974). Ponha pra tocar logo antes de “Magnólia”, por exemplo, e sinta a vibe. Outra homenagem é o cover de “Sexy Iemanjá” (Pepeu Gomes e Tavinho Paes), dialogando com a própria identidade de Rachel enquanto “Sereiona”. Uma curiosidade é que, nesta versão, a artista não gravou a estrofe “vou me preparar com um banho de mar pronto pra ser todo seu (…)”, preferindo repetir a mesma do início da canção – “tem a ver com o mar, o luau solar (…)”.

E não tem como falar de reverência sem falar de “Alvoroço” (Rachel Reis, Russo Passapusso, Sekobass), que traz a participação do BaianaSystem na produção e interpretação. “Acho que as pessoas já esperavam que esse feat existisse”, disse Rachel, em entrevista, relembrando a letra de “20h”, um de seus primeiros sucessos: “Às 20h eu tô saindo / Vou pra avenida que Baiana vai passar”. De fato, “Alvoroço” é, ao mesmo tempo, uma homenagem à pipoca do BaianaSystem e uma saudação à trajetória comum da artista e do grupo enquanto representantes da Bahia na “nova música brasileira”. “E só quem viu passar tem pressa de experienciar de novo o acalanto de um tumulto bom”, sempre lembrando que “o cantor e a cantora nasceram em Feira”, como pontua Russo em seus versos.

Em Divina Casca, Rachel também se dispõe a explorar outros universos sonoros, por vezes se distanciando das matrizes do pagodão e do arrocha. Essa proposta se reflete na diversidade de produtores que participam do trabalho: além de Barro e Guilherme Assis, que formataram a sonoridade do Meu Esquema, a artista teve a contribuição de Iuri Rio Branco, RDD, Diogo Strausz, Tomaz Loureiro e Marcelo de Lamare. Algumas faixas, por exemplo, contam com arranjos de metais e cordas, ausentes no trabalho anterior. O resultado pode causar certo estranhamento a quem está habituado a vê-la como uma cantora de músicas mais festivas ou de “baianidades”. Mas, como já ficou claro, Rachel não está nem um pouco disposta a caber em outro lugar que não seja sua própria casca.

Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e DJ seletora. Trabalha como produtora musical na Educadora FM da Bahia. Mais detalhes sobre a autora aqui.

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Rachel Reis - Divina Casca
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