Gilberto Gil

Gilberto Gil inicia turnê de despedida em clima de ‘até breve’

Antes de começar, neste sábado (15), na Arena Fonte Nova, em Salvador, o clima do primeiro show da turnê Tempo Rei, de Gilberto Gil, era de despedida. Pairavam os questionamentos se aquela seria mesmo a última chance de ver o artista ao vivo em Salvador. Um cantado início do fim. Aquele sentimento rapidamente se dissipou no ar. A estreia da turnê podia criar uma atmosfera de adeus, mas foi de festa e celebração. 

A ideia é diminuir a intensidade de sua agenda, respeitando o próprio tempo, algo tão eternizado em sua obra. “Uma despedida dos grandes espetáculos, que já venho fazendo há mais de 60 anos. Estarmos aqui juntos é o sentido profundo de ter me dedicado, nós termos nos dedicado, a essa longa carreira”, disse Gil no palco, seguido por um canto emocionado, mas contido dos versos “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. 

Acompanhado por uma mega banda formada por 16 músicos, todos vestidos de branco, Gil entrou no palco com cerca de 30 minutos de atraso, trajando uma camisa vermelha com motivos tropicais, com figuras de coqueiros e sol. Numa postura imponente, de um homem que sabe, no alto de seus 82 anos, sem precisar dizer muito, a força de sua obra. 

A banda reunia alguns de seus filhos, netos e parentes que já acompanhavam Gil em turnês anteriores, como Bem Gil (baixo e guitarra), João Gil (baixo e guitarra), José Gil (bateria), Nara Gil e a nora Mariá Pinkusfeld (backings). Além de um time que começa por Mestrinho (sanfona) e Danilo Andrade (teclado), seguindo para o naipe de sopros com Diogo Gomes, Thiago Oliveira e Marlon Sette, até a percussão de Leonardo Reis e Gustavo Di Dalva (percussão), além de um quarteto de cordas.

Com direção artística de Rafael Dragaud, direção de musical de Bem Gil e José Gil, a apresentação trouxe arranjos adaptados, respeitando os limites atuais da voz de Gil e dando um tom celebrativo à vasta obra. Seus álbuns mais famosos foram lembrados, com a maioria dos principais sucessos presentes. A maior parte do repertório, apresentado em 2h30 de show, foi calcado na obra produzida nos anos 1970 e 1980, mas teve espaço para quase tudo. Quando não cantadas integralmente, preciosidades do artista apareciam como música incidental ou em introduções com execução instrumental.

A proposta, no entanto, ia além da música, era uma experiência artística imersiva e sensorial como prometido na divulgação. Ares de superprodução, com fogos de artifício, fogo no palco e um sofisticado tratamento audiovisual exibido em um mega telão de led de altíssima definição e uma estrutura em formato espiral anteposta. Algo poucas vezes visto em shows de artistas brasileiros. 

Em diálogo com cada canção, as peças mostravam trechos das letras e momentos da carreira de Gil se alternando com referências e homenagens. Tudo com muito cuidado, com cada detalhe fazendo diferença e fazendo o show ir muito além de um punhado de hits reunidos.

Palco da turnê Tempo Rei, com refinado trabalho audiovisual em painéis de led - Foto: Pridia Divulgação

Com ingressos esgotados nas últimas horas, o público presente foi estimado em 53 mil pessoas, que pagaram entre R$ 90 (meia na cadeira superior) e R$ 450 (inteira na pista premium), sem falar nos ingressos Vip Expresso 2222, que chegavam a custar R$ 1.450, com direito a passagem de som, open bar e um kit exclusivo.

Repertório

Já no início, o tom era de celebração à trajetória de Gil. Uma noite que se mostrava realmente especial, com lembranças de vários momentos da carreira e da vida do artista e um repertório, em boa medida, não tão trivial, pelo menos na primeira metade do show. A abertura com “Palco”, com Gil fazendo questão de destacar os versos “subo neste palco, minha alma cheira a talco, como um bumbum de bebê” dava o recado que os 82 anos não significavam aposentadoria. 

Uma surpreendente “Banda Um”, da lavra do início dos anos 1980, seguida de “Tempo Rei”, dava a pista do que seria a noite, com um equilíbrio entre a redescoberta de pérolas pinçadas das dezenas de discos de Gil e clássicos imortalizados e cantados por qualquer brasileiro que preza pela criatividade musical brasileira das últimas décadas.

Era a chave para um passeio emocionante ao passado que viria a seguir, com uma bela homenagem a alguns de seus mestres. O xote ”Eu Só Quero um Xodó”, de seu parceiro Dominguinhos com a esposa Anastácia, vinha com imagens do velho Luiz Gonzaga ao fundo, seguida da bossa “Eu Vim da Bahia”, que trazia referências a Dorival Caymmi e João Gilberto.

A jornada seguiu por um caminho não óbvio, pelo menos diferente de shows mais recentes de Gil. Talvez por isso pareceu surpreender uma boa parte do público, especialmente uma maioria classe média acima de 40 anos, aparentemente com mais intimidade com os hits radiofônicos do artista do que com todo seu histórico. 

Gil voltou ainda mais no tempo, indo para o início da carreira e fazendo lembrar dois dos momentos mais marcantes da carreira e de sua presença nos palcos. Primeiro foi aos tempos da Tropicália, com “Procissão”, seguida de “Domingo no Parque”. Essa última um retorno a 1967, quando no festival da Record apresentou a música marco inicial do movimento. Quase 60 anos depois, parecia novinha, saborosa e provocante, com arranjos atuais, mas sem deixar de referenciar o passado.

Na sequência, um vídeo de Chico Buarque em diálogo com Gil relembrou outro momento marcante, mas desta vez triste, de nossa história. Quando, em 1973, a ditadura militar censurava simples canções e desligou os microfones dos dois artistas durante a execução de “Cálice”, parceria da dupla, durante o festival Phono 73.

Gil só voltou a cantá-la com Chico 45 anos depois, no festival Lula Livre. Na Fonte Nova, pela primeira vez, inseriu a música em seu repertório. Entremeada com imagens do período da ditadura, incluindo vários presos e desaparecidos políticos, como o jornalista Vladimir Herzog e o ex-deputado Federal Rubens Paiva, torturados e mortos durante o regime. A música foi um dos momentos mais emocionantes e marcantes do show. 

Assim como o filme ‘Ainda Estou Aqui’, “Cálice” se mostra ainda necessária. Serve “para os jovens ficarem atentos”, como disse Gil no show. Não à toa, o público reagiu aos gritos de “Sem Anistia”, em protesto contra a proposta de absolver os acusados da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.

O show seguiu celebrando o passado com sabor de eternidade da história do baiano, que desfilou músicas de várias fases da carreira. Músicas que contam sua trajetória como um dos maiores nomes de nossa música, mas ao mesmo tempo fala da vida de várias gerações, que cresceram ouvindo suas composições buriladas com melodias, ritmo e poesia.

A segunda parte da apresentação ilustrou bem isso. Gil se voltou para alguns de seus maiores sucessos. Lembrou a trilogia “Rê”, com “Refazenda”, contou a história da viagem à Nigéria que deu origem ao segundo álbum da série e cantou “Refavela”, seguido de “Não Chore Mais”, rememorando o outro mestre, Bob Marley, “Extra”, “Vamos Fugir”, “A Novidade” e “Realce”, uma das que mais agitou o público presente. 

A sequência seguinte retornava a hits menos celebrados e por vezes esquecidos no repertório. Começando com “A Gente Precisa Ver o Luar”, tirada do álbum ‘Luar’, de 1981, seguida de um lado mais roqueiro, que andava sumido dos shows, com “Extra II (O Rock do Segurança)” e “Punk da Periferia”, com o artista chegando a levantar o dedo médio como o refrão sugeria. 

Já do meio para o fim do show uma sequência mais branda. Quando Gil deixou a guitarra de lado, sentou num banquinho e cantou serenamente para delírio do público. “Se Eu Quiser Falar com Deus” veio seguida de outro momento emocionante. “Evidentemente esse show é pra mim, para nós e para minha filha Preta”, disse o cantor ovacionado. “Essa música é homenagem a sua mãe”. Cantou “Drão” com imagens da ex-mulher e dos filhos do segundo casamento.

O sucesso um pouco mais recente, “Estrela”, dos anos 1980, mas gravado por ele apenas em 1997, proporcionou uma constelação de celulares acesos no estádio. Enquanto “Esotérico” ganhou o coro mais bonito do público. Elas fecharam a sequência com violão para arrebentar de vez qualquer coração ainda resistente. 

Na parte final, Gil transformou a Fonte Nova na festa que já está acostumado a fazer, misturando ritmos e dialogando com a diversidade que marcou sua carreira. O forró de “Expresso 2222”, o ijexá de “Andar com Fé”, e a sequência matadora com “Emoriô/ Dia da Caça”, com participação de Russo Passapusso, que remeteu ao álbum ‘Gil Baiana ao vivo’, que registraram ao vivo em 2020, no álbum com o BaianaSystem. Uma aparição rápida do vocalista que incendiou o público. 

Gilberto Gil. Foto: Pridia / Divulgação
Russo Passapusso em participação no show de Gilberto Gil. Foto: Pridia/ Divulgação

Assim como a presença, mais tímida, da cantora e ministra Margareth Menezes, que fez o backing vocals de “Toda Menina Baiana”. A música foi o momento mais animado do show, com as milhares de pessoas caindo na dança. No bis, a arena virou uma praça de interior em festa junina com ”Esperando na Janela” e depois de samba na despedida regada a “Aquele Abraço”. 

Deu tempo ainda de Gil cantar praticamente a capela os versos “Ô Bahia, Bahia que não me sai do pensamento”, de “Baixa dos Sapateiros”, de Ary Barroso. No final, ficou um clima mais de até breve do que de adeus.

Há décadas Gil vem cantando entre outras coisas sobre o tempo e a finitude. Ele sempre mostrou, que via o tempo como um desejo de permanência e transformação. Se alguém imaginava que o clima seria de fim ou despedida, nessa estreia da nova turnê ele mostrou que pode ser o encerramento de uma fase de sua grandiosa carreira, mas aos 82 anos ainda faz de um show aqueles momentos celebrativos que nos faz entender por que a música brasileira é tão celebrada e por que ele é um de seus maiores nomes. Aqui e agora e pra eternidade.

Depois de Salvador, a turnê segue agora para outras 9 cidades, em mais 17 apresentações, passando por Rio de Janeiro (29 e 30/3, 5, 6 e 31/5 e 1º/6), São Paulo (11 e 12/4 e 25 e 26/4), Brasília (7/6), Belo Horizonte (17/6), Curitiba (5/7), Belém (9/8), Porto Alegre (6/9), Fortaleza (15/11), encerrando no Recife (22/11).

Arena fonte nova Gilberto Gil geral - Foto Pridia Divulgação 2

Setlist

1. Palco (Gilberto Gil, 1980)
2. Banda um (Gilberto Gil, 1982)
3. Tempo rei (Gilberto Gil, 1984) – com citação de Aqui e agora (Gilberto Gil, 1977) na fala do artista
4. Eu só quero um xodó (Dominguinhos e Anastácia, 1973)
5. Eu vim da Bahia (Gilberto Gil, 1965)
6. Procissão (Gilberto Gil e Edy Star, 1965)
7. Domingo no parque (Gilberto Gil, 1967)
8. Cálice (Gilberto Gil e Chico Buarque, 1973)
9. Back in Bahia (Gilberto Gil, 1972)
10. Refazenda (Gilberto Gil, 1975)
11. Refavela (Gilberto Gil, 1977)
12. Não chore mais (No woman no cry) (Vincent Ford, 1974, em versão em português de Gilberto Gil, 1979)
13. Extra (Gilberto Gil, 1983)
14. Vamos fugir (Gilberto Gil e Liminha, 1984)
15. A novidade (Herbert Vianna, Bi Ribeiro, João Barone e Gilberto Gil, 1973)
16. Realce (Giberto Gil, 1979)
17. A gente precisa ver o luar (Gilberto Gil, 1981)
18. Punk da periferia (Gilberto Gil, 1983)
19. Extra II – O rock do segurança (Gilberto Gil, 1984)
20. Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil, 1980)
21. Drão (Gilberto Gil, 1982)
22. Estrela (Gilberto Gil, 1981)
23. Esotérico (Gilberto Gil, 1976)
24. Expresso 2222 (Gilberto Gil, 1972)
25. Andar com fé (Gilberto Gil, 1972)
26. Emoriô (João Donato e Gilberto Gil, 1975) – com Russo Passapusso
27. Toda menina baiana (Gilberto Gil, 1979) – com Margareth Menezes
Bis:
28. Esperando na janela (Targino Gondim, Manuca Almeida e Raimundinho do Acordeom, 2000)
29. Aquele abraço (Gilberto Gil, 1969)

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