Tecnoplanta

Faixa a faixa: Tecnoplanta – Som e corpo em mutação na cena underground baiana

Tecnoplanta (@t3cnoplant4) é o nome do projeto musical da cantora, compositora e produtora Flora Dourado, artista travesti de Salvador, que une música eletrônica, arte visual e vivência trans em um processo criativo profundamente autoral. Criado em 2020, o projeto nasceu durante o início de sua transição de gênero e reflete a fusão entre corpo, som e identidade.

Misturando elementos do downtempo, jungle, funk, pagodão, vogue beat e MPB, a artista constrói uma sonoridade experimental e mutável. Seu primeiro EP, Tecnolab Vol. 1, foi lançado em 2021. Desde então, lançou outros quatro EPs e diversos singles, além de colaborações com artistas como Úrsula Zion e a banda Tangolomangos.

Em 2022, Tecnoplanta passou a atuar também como DJ, marcando presença em festas e festivais da cena underground e ballroom de Salvador. A experiência nas pistas influenciou diretamente o EP Tecnobaile, com forte presença de ritmos dançantes.

Tecnoplanta é ainda pioneira na produção de vogue beat na cidade e desenvolve o conceito de pagovogue, mistura entre o pagode baiano e o som da ballroom culture. Em 2024, foi convidada a integrar a Casa de Ratturas (DF), sendo a única representante do coletivo na Bahia.

Seu primeiro álbum, Tecnicolor Sensação, lançado em dezembro de 2023, é um mergulho em paisagens sonoras híbridas e emocionais. Com referências que vão de Luiza Lian a The Prodigy, o disco é uma celebração da fluidez sonora e identitária, onde corpo e música se confundem numa narrativa de descoberta e transformação. Aqui a própria Flora conta num faixa a faixa exclusiva para o el Cabong sobre cada uma das músicas presentes no trabalho.

Ouça Tecnicolor Sensação – Tecnoplanta

Faixa a Faixa  – Tecnicolor Sensação – Tecnoplanta

TÁ TUDO MEIO BAGUNÇADO

“Essa faixa foi criada no período da pandemia, quando eu estava começando a aprender sobre samplear, e ela ainda foi produzida 100% no ipad. Terminei a mixagem e masterização no pc. Nela eu sinto que as referências mais fortes eram as sonoridades do trip hop, tanto pelo uso de breakbeats de base quanto pela voz mais etérea. Posso citar algumas bandas e artistas de referência que escuto bastante, como Smoke City , Luiza Lian , Livia Nery e Céu. 

Na letra eu faço uma reflexão em cima das coisas que eu estava elaborando e sentindo na pandemia sobre corpo, gênero, rotina e território. Li bastante Preciado, Krenak, David Kopenawa; essa música ainda vem de um processo criativo bem experimental, tem um tom bastante abstrato e é uma das primeiras músicas que produzi.”

O GRAVE BATE

“O GRAVE BATE é quase uma parte 2 de “tá tudo meio bagunçado”, é um “apesar de”: mesmo com tudo bagunçado, ainda estou aqui. E aí tem um contra lugar da bagunça, a tentativa de achar eixo.  Essa é uma das poucas músicas que tem uma inspiração e referência direta em uma letra de Luiza Lian da música “eu estou aqui”. A produção musical em si já segue um caminho um pouco mais denso com um som mais encorpado com ênfase nos graves e na voz, utilizei um 808 nos graves como referência às sonoridades trap, e nas vozes fui fazendo cortes pra dar um efeito de picotes em alguns momentos. Além disso, na mixagem explorei bastante o stereo e os movimentos que a voz ia tomando no decorrer da música.

O beat começou com um sintetizador que está presente desde o início, adorei o timbre dele, ainda mais por me lembrar da abertura do ps2. Além disso, utilizei alguns elementos que gosto muito como cuícas com delays e alguns breaks, a brincadeira entre real e virtual começa a partir do contraste do beat com a voz e dos timbres de videogame que vão surgindo e preparando terreno pra próxima música: SONIC.” 

SONIC

“Seguindo a linha narrativa do álbum, aqui a busca de eixo que se propõe em O GRAVE BATE segue firme. SONIC traz uma nova camada pra bagunça do início, agora menos etéreo e abstrato, as faixas começam a dialogar de maneira mais terrena. O grave bateu “meio sem rumo, tateando, mas com o pé no chão” , e  é esse início de pôr o pé no real. É nela que as letras começam a relatar assuntos cotidianos de maneira menos abstrata, mas ainda assim com alguma malícia nesse entrelugar do abstrato com o concreto.

Um desafio em particular dessa faixa é que ela é uma das primeiras que trago as minhas influências do rap e do hip hop nas rimas e na composição de maneira mais explícita, elemento que foi fundamental e acabou atravessando o álbum todo no final.

Justamente pelo TECNICOLOR SENSAÇÃO ser um álbum em movimento, aquilo que se propõe sensorialmente é sempre pelo caminho do contraste, das contradições e dos paradoxos. SONIC traz elementos de videogame justamente na contraposição entre real (rap, letra) e virtual (referências de videogame). Na letra eu introduzo assuntos rotineiros, mas ainda com um tom de tratar a vida real como um jogo, com negociações e adaptações. SONIC fala sobre velocidade, sobre movimento e, por mais que utilize de elementos mais densos, ainda é um primeiro pé no chão.”

NOSSOS PROBLEMAS

“Essa música nasceu quase como um interlúdio, e brinca justamente com tudo que foi explorado no álbum até agora. Cantar um reggae no meio do que já estava sendo produzido não era bem um caminho óbvio, mas, intuitivamente, essa música respondia muito bem alguns dilemas até então levantados. Essa falsa dicotomia entre abstrato e concreto vai se quebrando e o reggae é, justamente, um gênero que consegue carregar muito bem essa mistura. Ao mesmo tempo que o reggae tem uma função política, enquanto denúncia social, ele também carrega consigo uma proposta de contemplação e bem estar. O pé no real não lhe impede de sonhar, mas também questiona: o que temos sonhado até então? 

Falando diretamente da faixa, a música segue um ritmo próprio abordando tecnologia e também os limites da realidade. Mas, em última instância, ela pede um respiro, uma pausa e também um lembrete de nossa efemeridade, da necessidade de, às vezes, não se levar tão a sério; mesmo que tenhamos problemas reais que não fiquemos presos a eles.”

FUTURO GLAMOUR

“Agora que deu o respiro, vamos retomar aos nossos problemas reais… Nessa faixa retomo à pergunta da letra na faixa anterior, ‘o que temos sonhado até então?’ Quais futuros são possíveis e pra quem? Se a última faixa foi um respiro, essa começa a ser a falta de ar kkkkkkk 

‘Futuro glamour’ é a faixa que marca a chegada ao meio do álbum, a bagunça etérea do início já começou a se transformar em raiva, saímos de vez do foco narrativo da voz e a guia começa a ser a imprevisibilidade dos beats também. A sensação de imprevisibilidade nessa faixa, diferente da primeira música, não fala de maneira etérea que está tudo meio bagunçado, ela literalmente bagunça tudo. E é na concretude da bagunça que se percebe que houve um passo de maturidade em aprender a nomear a sua própria bagunça, ao ponto de reorganizá-la mesmo que de maneira desconexa em outra coisa.

‘Futuro glamour’ é sobre isso: a imprevisibilidade de um futuro e um eterno sentimento de não saber pra onde as coisas estão indo. E não digo isso de maneira só conceitual teórico, o processo de produção dela foi completamente caótico e foi, de fato, um processo catártico de me permitir dissociar um pouco dos formatos clássicos da música eletrônica, e fazer um grande exodia caótico de um futuro em movimento com elementos que eu sempre quis pôr em música. Selecionei samples que eu achava divertido e esse era o único critério, afinal meu futuro glamour carrega um tom dúbio do desgaste do real em uma distopia virtual kkkkk, tem barulho de vários jogos: tem som de moab que é uma bomba de jogo de tiro, sampleei a abertura do pinball do windows antigo, tem o som do mario quando pega estrela , tem abertura de cavaleiros do zodíaco…. tem picote de muita coisa ai. Caótico, mas achei bonitin porque é o tipo de coisa que tem muito de mim, e demonstra a introdução de um cansaço e de uma desesperança que vão sendo desenvolvidos no decorrer do álbum, mas que até então só surgem como raiva.”

DELÍRIOS LATINOS

“Essa faixa também poderia ser facilmente um interlúdio, é a primeira faixa toda instrumental do álbum, um respiro da voz. Em ‘futuro glamour’, o último canto é de raiva, aqui a voz descansa, dando espaço não só para que o instrumental narre novamente a história, como o corpo também.  

Na última faixa é como se houvesse uma explosão e aquilo que, até então, era uma bagunça abstrata e observada de longe pelo ouvinte, agora toma forma e incorpora a quem escuta. A ausência da voz é também uma estratégia de descentralização da racionalidade lógica para uma retomada a um campo literalmente do não-dito; se em futuro glamour dou vazão à raiva e ao caos, em delírios latinos sigo dando vazão, mas agora deslocando para o desejo e ao tesão. 

Esse álbum foi criado na intersecção dos meus projetos como produtora/cantora e dj. Pessoalmente falando cada área dessa foi se atravessando e dando contorno ao que chamo de tecnicolor sensação. De futuro glamour pra cá tem bastante referência das minhas pesquisas de pista enquanto dj, e foi na pista que comecei a entender melhor o funcionamento do corpo e da dança como algo essencial na minha musicalidade e a importância de usar o corpo como referência na hora de produzir. Quando penso no corpo, na minha musicalidade e na dança, gosto de buscar movimentos espontâneos que fujam de uma coreografia e de uma linearidade normativa , gosto de dar espaço para que o corpo narre na estranheza também. 

VIDA DE ARTISTA

“Do tesão, do desejo e do delírio é preciso retomar ao cotidiano… nesse momento ‘vida de artista’ vem falar de um movimento de refinar um desejo que nasce do delírio, do sonho e do romance, mas só desperta tesão quando se torna real. Porém, o real é contraditório e nem sempre tão agradável… 

A voz volta nessa música seguindo o ritmo da raiva deixada em futuro glamour, mas agora com um novo elemento: ao invés da crítica delirante a estrutura e ao que se tem sonhado, em “vida de artista” o foco é na crítica ao cotidiano e aquilo que eu vivo diretamente. Antes uma crítica etérea a um futuro glamouroso sem sentido, e agora uma crítica a algo que me mobiliza diretamente e faz eu me implicar pessoalmente para pensar: ‘além do que é estrutural e do que fazem comigo, o que tenho feito com o que fizeram de mim até então?’.

‘Vida de artista’ tem um sample do sample de ‘friday’ de ice cube, eu amo utilizar os samples do samples. Digo samplear aquilo que já foi sampleado. O roubo do roubo evidencia o desgaste e a repetição, ao mesmo tempo em que me dá uma sensação muito doida de possibilidades infinitas dentro da música.”

BEIJO FURTACOR

“Aqui a regra é clara: toda vez que a voz tem raiva é preciso reaprender a respirar. Então, a segunda música instrumental do álbum é o que retira do transe da repetição e dos problemas cotidianos da vida de artista com um beijo furtacor. 

‘Beijo furtacor’ é o frescor da descoberta e da experimentação, é  romance com  tesão indissociados, é um elogio ao poder do delírio que agora que já se fez real, é palpável ao ponto de se beijar. O beijo nessa música é sinônimo de contato e da saída de si para uma disponibilidade radical ao outro, o frescor de um beijo que se altera de acordo com a incidência da luz, é um beijo em movimento.”

TRAVESTI FLOW

“A disponibilidade radical ao outro põe uma semente de coletividade que desabrocha em ‘travesti flow’, as bordas da individualidade e da coletividade se borram em um corpo coletivo que realoca o transe em transição. É a primeira música que fala sobre um profundo desejo de viver e se manter viva. Esse desejo nasce justamente da contradição de se permitir morrer e se despedir das coisas certas em vida para que outras possam surgir, e que com isso, volte a fazer sentido confiar em tudo aquilo que estava bagunçado até então. Obviamente, todo esse processo está totalmente conectado ao fato de eu ir me entendendo enquanto uma travesti. 

É um elogio a bagunça criativa e a desordem que reorganiza o caos. É, no fim do álbum, a primeira música do bloco final, nela eu me implico diretamente em solucionar o que até então eram dilemas e questões aparentemente indissolúveis. Neste momento, não terceirizamos a responsabilidade da representação para ninguém, assumimos a responsabilidade ocupando os espaços que foram feitos ou não pra nós, afinal ‘tô viva mas é tudo ilusório, quando deito na minha cama só quero fechar os olhos’. O que digo em última instância e já nas considerações finais do álbum é: que estou viva, o real é território de disputa e eu não tenho nenhuma pretensão de fingir que a vida é boa se ela não for, ‘sem tesão ,minha paixão é pelo fim, eu não quero ficar com quem não pode dar o melhor pra mim’ e por honrar minha vida e dos meus ,pretendo morrer fazendo o que faz sentido. É uma música com um tom de idealismo que parecia ter se perdido até então… gosto disso.”

PRECISO DE UM SONHO

“Do desejo de viver que, pela primeira vez, vira pauta em ‘travesti flow’, é preciso saber qual horizonte eu busco pra mim. Preciso de um sonho é sobre o desejo de algo a longo prazo para além da materialidade que dê liga ao real, é a retomada daquele idealismo que ressurge na última música.

 Preciso de um sonho é sobre estratégias em vida pra se manter viva. Se, até então, sonho, delírio e tudo aquilo que escapa do real foram postos de maneira instintiva, aqui todos esses elementos tomam um novo tom com o desejo de sonhar e com a consciência da insuficiência do que está dado na realidade material. Na particularidade desses desejos a música aborda a profunda necessidade do imaterial, daquilo que dê sentido a todo o resto.

Mas nada aqui é totalmente linear e visto de um único ponto de vista, o espectro do tecnicolor sensação é o furtacor. Com isso, sonho e desejo de fuga se misturam e as relações contraditórias de diálogo do imaterial com o material se instauram, enquanto comportamentos irracionais que não damos conta tomam conta de nós; a música vai virando quase uma ode a contradição. ‘eu te vejo ,eu te noto, te escuto, mas não suporto’. 

Falando de maneira direta, a música aborda sobre consumo de maconha, compulsões, sonhos, relações parentais, estratégias e muitas outras coisas… há camadas e mais camadas de furtacor nessa música, mas, em última instância, ela é sobre o desejo de sonhar. Ainda assim, há a necessidade de estar atenta a como sonho e realidade tem se conectado, acredito que bons sonhos te levam a se conectar de maneira ainda mais profunda com o real, mas a falta de conexão entre esses dois também pode gerar a fuga, o delírio e a compulsão.”

FODO COM A MORTE

“Da fuga, dos delírios, das compulsões e dos lutos, se na última música a gente precisava de um sonho, aqui a gente precisa de um flerte com a morte. Fodo com a morte é um delírio que, em momentos de enlutamento, foi flertando com a morte que eu tive a possibilidade de produzir vida. O desconforto e a repetição dão ênfase a um processo de luto, com fases e momentos de altos e baixos. Nesse momento da minha vida sonhar era me permitir morrer, pra me desfazer do que doía na vida cotidiana. O sonho era inebriante, um primeiro sentimento de vida em meio ao luto, fodo com a morte é o embrião da tecnicolor sensação, ele é o começo desse processo e finaliza o álbum com essa retomada ao que iniciou a bagunça da primeira faixa.

Essa faixa foi a que originou o conceito do álbum, uma curiosidade é que eu achei que o álbum era sobre luto inicialmente, até que ele foi tomando forma e eu fui percebendo que existe bastante melancolia e reflexões sobre alguns fins, mas que, em última instância, o álbum vem enquanto um convite a conhecer o que chamo de tecnicolor sensação e isso também inclui o luto, masão centraliza nele.” 

TECNICOLOR SENSAÇÃO foi a forma como eu encontrei para nomear um sentimento bem inconstante que senti nos últimos anos, foi o sentimento que me fez voltar a ter vontade de cantar e que me fez, de alguma forma, fazer as pazes com a vida.

Em fodo com a morte, a necessidade de sonhar se realoca, porque no decorrer da música o meu sofrimento vai tomando forma, e o boombap do final traduz alguns sentimentos difusos me permitindo agora finalmente um descanso após a vazão.”

CANSEI

“Cansei é um poslúdio, é um momento de descanso após todo o processo do álbum. Ao mesmo tempo que tem um tom de despedida é também um até logo no prenúncio dos próximos projetos, é o pós crédito kkkkk. É a primeira e única música com participação de vaqs(felipe vaqueiro), já dando uns spoilers de alguns projetos que temos planos de fazer em conjunto neste ano.

Seguindo a narrativa do álbum, é na calmaria pós tempestade que cansei surge, é como se desse continuidade ao clima do fim da última música. Ainda em movimento, cansei é sobre um amor em trânsito, um romance em meio ao caos. Foi também as minhas pazes com a lov song que durante muito tempo, em projetos anteriores a tecnoplanta, foi minha principal forma de composição, e agora nos projetos futuros pretendo retomar algumas antigas canções que eu compus no violão, e devem amadurecer o que cansei propõe.

Uma curiosidade de cansei é que ela faz citação à outras 2 composições minhas feitas pra mesma pessoa: a lov song no verso ‘já encontrei um amor tranquilo que me ama como eu sou agora to em outro flow’, e a uma música ainda não lançada que compus no violão que eu cito no verso ‘deixa eu entrar bem devagar, (minha melhor versão é a que ama te amar)’.”

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