Rei Lacoste: “a arte está no lugar de fazer a vida bastar, de fazer com que as pessoas não se matem”

Rei Lacoste
Rei Lacoste - O Que Você Ouve O Que Houve Com Você

O artista baiano Rei Lacoste dilui a fronteira do Rap com outros gêneros ao lançar sua terceira mixtape, O Que Você Ouve / O Que Houve Com Você, trabalho que traz temas íntimos em beats que vão do reggaetón, drill japonês à MPB. Confira a entrevista e faixa-a-faixa exclusiva.

Por Pedro Antunes de Paula

De cabelo recém trançado, barba feita e camisa do Frank Ocean, o rapper da Boca do Rio selecionava páginas e mais páginas que escreveu na última noite sobre sua nova mixtape para me enviar pelo Whatsapp. “Quer pensar numa matéria, entrevista, faixa-a-faixa? Escrevi umas coisas aqui”, me disse, enquanto esperávamos Manu Chao subir no palco numa noite de sábado no pelourinho.

Na semana anterior, e muito animado com o novo disco do Bad Bunny, Rei Lacoste já havia me encontrado num bar, lá pelas tantas e não muito sóbrio, para contar sobre a compilação de novas músicas que estava fazendo: “Estive atrás dos sons das coisas. Começo com sample de relinche de cavalos e termino com aquela que Caetano adoraria”. Entendi que poderia ser fruto da madrugada, mas ao receber a mixtape dias depois entendi que ele estava muito mais sóbrio do que pensei.

Rei Lacoste - Quadro006

A empolgação de lançar uma mixtape muito íntima, retrato de processos de pesquisa sonora, histórias particulares, e um período de composição rodeado de amigos e artistas, fez com que as ideias escapassem de sua boca e seus dedos ao longo desses dias, e por isso, essa deve ser a primeira entrevista e cobertura de lançamento que se aprontava antes mesmo de ser escrita.

Ele me contava sobre o citypop japonês e a melosidade aproximada do arrocha baiano; lamentou que na festa de Yemanjá de 2023, não deu tempo de fazermos nossa versão amapiano de Raquel dos Teclados, apesar de termos conseguido a versão afrobeat de “Deusa do Amor”. Estava aliviado pelo novo título acadêmico, e brinco que só o chamarei de Doutor daqui para frente.

Enquanto caminhávamos Rei Lacoste era cumprimentado por várias outras pessoas, artistas e profissionais da música e audiovisual, além dos conhecidos da cidade, como um vereador passeia em seu município de sorriso na cara. O Que Você Ouve / O Que Houve Com Você é feito disso tudo: desses encontros urbanos, do universo de sentimento que entorna a persona de Rei Lacoste, e que é refletido na mistura de referências para este novo trabalho. “Apontei para reggaetón, afrobeats, drill japonês, trap experimental, future bass, MPB”, diz.

Tem seu rosa-bebê já de assinatura, a cultura japonesa, a variedade de gêneros latinos e afrobrasileiros, além de uma volatilidade entre o íntimo e o popular. Mas nem sempre foi assim. Reila, como os mais próximos se referem, possui uma trajetória interessante na música. Tocava em uma banda de rock de Salvador ao lado de Giovani Cidreira, a Velotroz, inicia sua carreira no Rap e agora, pode-se dizer que faz música eletrônica brasileira, mas do mundo. Cada vez mais pop e cada vez mais Rap, Rei Lacoste multiplica, em todo novo lançamento, os caminhos estéticos de seu trabalho.

E não o faz sozinho. Nessa nova mixtape, o artista agrega um time de artistas majoritariamente baianos, mas sem deixar de atentar-se à ascensão de nomes de outras regiões do Brasil. “Tive participações de pessoas muito especiais: Dunna, Giovani Cidreira, Bebé, Tangolomangos, Juçara Marçal, cajupitanga, Davzera, Vênus Não É Um Planeta, Clara SFX, Volúpia, Clarisse Lyra, além da mixtape ser produzida por mim e Zepeto (que também fez todas as masters)”, diz o artista.

É semelhante ao seu processo de misturar os ritmos e conceber um caminho estético próprio, o de costurar diferentes estímulos em uma linha própria. E apesar de um trabalho pessoal no modo de ser construído, abre espaço para a ficção como ferramenta criativa.

“Acho que escrever só o que se vive é muito poético, mas pouco criativo. Por isso gosto de misturar ficção e documentário quando faço música.”

A entrevista a seguir foi realizada em uma série de dias, na coleção de nossos encontros em que já é difícil lembrar o que nos é da memória, e o que inventamos pra gente. Deixo na mão de quem aqui lê, querer acreditar nas nossas doses de invenção. O que é concreto e muito real é a vontade de Rei Lacoste querer o novo, sempre, e sua nova mixtape é sua prova.

Confira a entrevista com Rei Lacoste a seguir:

Rei Lacoste

el Cabong: O que é “O Que Você Ouve / O Que Houve Com Você” ?

Rei Lacoste: “OQVOOQHCV, para mim, é um trabalho que dentre suas investigações e limitações, estão questões com a própria linguagem. Quando Rita Lee morreu, eu tive o contato com um tweet dela que dizia: “Obrigada Música por sempre estar lá quando ninguém mais está”. Isso me pegou legal. Fiquei me lembrando que era justamente isso. As coisas vão mudando e outras novas acontecem com a gente. Algumas estão imbricadas no trabalho – questões sociais, raciais, de sexualidade etc. – e no meio disso tudo, muitas vezes, a gente se vê só. Para muita gente a arte está neste lugar de companheira e salvação. No meu caso a música está num lugar central. Como Ferreira Gullar disse: “A arte existe porque a vida não basta”. Para mim a arte está neste lugar de fazer a vida bastar, de fazer com que as pessoas não se matem. 

el Cabong: Você fala muito sobre a proposta de uma mixtape. Fale um pouco sobre isso.

Rei Lacoste: Eu gosto de produzir compilados de trabalhos pois acredito que seja a melhor maneira de trabalhar conceitos – mesmo numa mixtape. Acho que muitas vezes, influenciados pela lógica do single/hit imposto pelas plataformas (lançar um trabalho novo a cada 28 dias) as coisas ficam muito efêmeras e os artistas não conseguem aproveitar ao máximo as potencialidades de um lançamento – compartilhar questões com o mundo. Muitas vezes, artistas do funk, por exemplo, estouram com hits mas não conseguem se manter por muito tempo, acho muito pelo fato de não lançarem álbum, não trabalharem conceitos e trazerem questões mais profundas – coisas que necessitam ser trabalhadas em conjunto: artistas do funk não lançam álbuns.

el Cabong: Fazer música porquê?

Rei Lacoste: No programa Sangue Latino do Canal Brasil, Caetano fala para Eric Nepomuceno que “a arte é uma inutilidade, uma compulsão de criar objetos inúteis” – mas ao mesmo tempo influencia todas as coisas úteis que existem. Claro que o conceito de arte não é estanque e que coisas antes impensáveis também podem ser material artístico, mas neste sentido, a arte não é útil como a medicina, a ciência e a matemática, mas ela está no lugar de influênciar o/a médico/a, o/a cientista, o/a matemática/o, e tudo que existe – assim, na espinha dorsal da humanidade, pode sim mudar o mundo.

Tento de alguma maneira, também ser influenciado pelas coisas que estão acontecendo no meu tempo

el Cabong: Talvez esse seja o trabalho mais diverso em relação aos ritmos e gêneros musicais presentes. O que te faz misturar tudo isso?

Rei Lacoste: Sou entusiasta e tento estar atento às mudanças das tendências musicais ocidentais. Fiquei encantado com os Corridos Tumbados Mexicanos, as atualizações do Flamenco por Rosalia, as atualizações da Salsa por Bad Bunny, as variações de subgêneros de afrobeats, etc. e como uma tradição antropofágica que está no nosso dna, tento de alguma maneira, também ser influenciado pelas coisas que estão acontecendo no meu tempo. Em “OQVOOQHCV, apontei para reggaetón, afrobeats, drill japonês, trap experimental, future bass, MPB, etc. e tive participações de pessoas muito especiais: Dunna, Giovani Cidreira, Bebé, Tangolomangos, Juçara Marçal, Cajupitanga, Davzera, Vênus Não É Um Planeta, Clara FSX, Volúpia, Clarisse Lyra,  além da mixtape ser produzida por mim e Zepeto (que também fez todas as masters).

el Cabong: Você já havia me dito que esse trabalho era um pouco mais pessoal. De que maneira?

Rei Lacoste: As músicas falam sobre questões íntimas, mas ao mesmo tempo universais. Coincidem com o momento em que virei Doutor em Artes Visuais pela UFBA, fiz turnê pela Colômbia e comecei a participar de mais projetos discotecando em pista ( Noite Transatlântica, Roda de Sets, Discografitas, etc). Acho que minha formação, que é muito específica – um mestiço, pesquisador em artes, morador de uma periferia de Salvador (Boca do Rio), de alguma maneira também traz uma maneira muito própria de criar e refletir sobre as coisas. Fico contente de compartilhar mais este trabalho assim, à minha maneira, e espero que de alguma maneira eu também possa trazer questões e contribuição para a música urbana contemporânea que estamos fazendo.   

Para quem gosta de música sem preconceitos.

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