Gravado de forma caseira, o álbum traz ideias mais diretas, trabalhadas em canções que demonstram a potência composicional e estética do grupo, além de uma energia equivalente à suas performances ao vivo.
Pedro Antunes de Paula
Cinco anos após “Sombrou Dúvida”, a banda goiana Boogarins apresenta dez canções inéditas em seu mais novo álbum de estúdio intitulado “Bacuri”. Neste quinto capítulo de sua discografia, através da memória de suas referências e de um amadurecimento estético próprio, a banda celebra a própria trajetória, encerra ciclos, e abre caminhos para uma nova fase.
Um dos maiores desafios do jornalismo é saber o momento de se colocar no texto, tanto por seu clichê de que a higienização do olhar faz com que os fatos e suas variedades de perspectiva estejam em evidência, quanto pelo papel social do campo jornalístico em mediar os acontecimentos para a sociedade, o que exigiria uma espécie de impessoalidade – que é sabido ser apenas da linguagem, já que uma visão sempre estará impressa no texto por suas inevitáveis escolhas e exclusões. Entretanto, a crítica é, e sempre será, um produto de opinião, a síntese subjetiva de impressões acerca de alguma obra, o que implica, invariavelmente, na impossibilidade de retirar-se como sujeito.
Fazer uma primeira crítica de um novo álbum do Boogarins é, sem sombra de dúvidas, dessas situações em que é impossível não me colocar no texto de maneira mais direta. Seria tentar retirar minha própria história, dissipar meu olhar, e ignorar o papel que a banda teve na minha formação cultural e profissional. Vejo que não faz sentido algum.
Isto porque Boogarins é um marco da cena independente brasileira dos anos 2010, e representou, como ainda representa, um coletivo imenso de jovens que querem fazer música, e querem viver música. Formada por Benke Ferraz (Guitarra e Voz), Dinho Almeida (Guitarra e Voz), Ynaiã Benthroldo (Bateria e Voz) e Raphael “Fefel” Vaz (Baixo e Voz), a banda sempre manteve uma abertura muito direta com seu público em sua trajetória, além de incentivar iniciativas de criação caseira – popularizadas pelo termo gringo DIY [Do it yourself / Faça você mesmo].
A banda é muito contemporânea, no sentido de se utilizar dos mais variados meios para se comunicar com seu público. Essa postura vai da criação de grupo de Whatsapp com fãs, encontros online, à workshops e oficinas de Benke sobre produção musical e composição em computador.
Todas essas iniciativas cativaram um público fiel, e fizeram com que a banda, inevitavelmente, representasse uma geração de artistas nesse novo contexto digitalizado, mediado pelas plataformas e redes. Mesmo povoando todos esses campos, sua potência sempre residiu na criatividade de composição e produção, mas, sobretudo, no “ao vivo” e sua presença.
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Apesar da abertura, a banda desde seu começo possui uma mística circunscrita. Faixas não lançadas oficialmente sempre apareceram em algum lugar, improvisos ao vivo se desenvolvem em faixas completas e o público vai tentando, aos poucos, desvendar os caminhos criativos da banda.
Falo por experiência, já que ouvir “Desandar” pela primeira vez me foi uma realização especial. Por algum motivo, ela me soava especificamente familiar. Depois de alguma investigação descobri ser pela estrutura melódica do baixo de Fefel e guitarra solo de Benke vierem da versão ao vivo de 2016 de Auchma na KEXP.
Logo depois de ficar desesperado por algum material novo com o lançamento de Manual (2015), me lembro de encontrar no YouTube uma tal de “Supernova”, gravada em uma sessão de estúdio, mas que não havia sido lançada. A canção, que por muitos anos foi minha favorita, dá as caras novamente no trabalho de improvisos Casa das Janelas Verdes (2017), que só foi lançado na Bandcamp e YouTube, numa participação tímida com Mahmundi. Ela só vai ser lançada oficialmente, com uma nova gravação, em 2022 no segundo volume da compilação de outtakes nomeada Manchaca.
Essa mesma história com “Refazendo”, que me apareceu no YouTube logo quando conheci a banda, mas só foi oficialmente lançada junto com outras raridades muito amadas na versão de 10 anos do disco de estreia As Plantas que Curam (2013), publicada neste ano de 2024.
Os conheci por uma amizade das mais próximas e importantes, num ensaio tenro de banda, e foi quando entendi um novo jeito de soar. Já juntei meus pais na sala, envolta de uma caixa de som, para ouvir o aguardado Sombrou Dúvida (2019), no dia de seu lançamento. Toda amizade minha já sabia alguma letra, por mais que não ligassem. Nesse sentido, um tempo meu foi completamente marcado. Seus sons me expressam imagens, pessoas, memórias, saudades.
Tudo isso por uma questão absolutamente pessoal, sem dúvidas, mas também pela força da banda residir em uma construção humana, força presente em suas performances ao vivo, em suas letras por vezes abstratas, mas de muito coração, e por toda essa brincadeira entre a criação, a música e o público, sempre direcionada a uma coletividade rara.
Neste sentido, acompanhar a banda é acompanhar um processo criativo, observar de longe, ou do mais perto possível, as ideias sendo trabalhadas e retrabalhadas até encontrarem uma solidez musical em alguma nova produção. É perceber que as duas palavras murmuradas por Dinho nos últimos segundos do improviso Manchaca, lançado no registro ao vivo Desvio Onírico (2017), nomearam um seguinte lançamento da banda, o disco Sombrou Dúvida (2019). É perceber que esse mesmo improviso se transforma em “Basic Lines”, faixa da compilação Manchaca Vol.2 (2022), que também usa o mesmo sample de orquestra utilizado nas três partes de “Lá Vem a Morte” (2017).
Sempre foi como fazer parte de um jogo, no qual a graça está em descobrir aquilo tudo que você ainda está perdendo. O lançamento não oficial de alguma faixa, um material descartado enviado por algum integrante no Whatsapp, uma adaptação de arranjo para o ao vivo, os improvisos que se transformaram em ideias completas e aqueles que deixaram de existir no momento em que foram tocados. Toda essa brincadeira nos aproxima, quebra a noção do sacro-artista. É gente que quer, que se decepciona, que se esforça para manter o trabalho ativo. O Boogarins quebra a dinâmica da atenção das redes por enxurrada de conteúdo, e nos conquista através do contato humano. Esse sempre foi seu maior trunfo.
As iniciativas mais recentes de compilar faixas não lançadas, outtakes e demos em Manchaca (2020 e 2022) e na edição de 10 anos do álbum primogênito, demonstram uma banda com desejo de celebrar sua própria obra e história, assim como a de consolidar seu trabalho através dessas lembranças. Bacuri, seu mais recente lançamento, também parece fazer parte disso.
CRESCER
Fruto de um processo de confecção que durou quatro anos, Bacuri mais parece ser a culminação de uma trajetória que se iniciou ainda no início da banda, com seu primeiro disco As Plantas que Curam (2013). Por ser o único trabalho, desde seu primogênito, a ser gravado de maneira caseira, mas, principalmente, por concentrar sua potência na dinâmica entre os quatro integrantes, suas referências, suas vozes, suas canções. Produzido por Alejandra Luciani, companheira de um dos integrantes e figura próxima à banda, o disco é creditado em seu release enviado à imprensa como “fruto do trabalho construído em banda e em família”.
No novo disco, cada um dos integrantes apresenta suas canções de forma concisa, e é o primeiro a protagonizar músicas com as vozes de cada um deles. Nesse sentido, a banda conseguiu transformar sua amizade, companheirismo e amadurecimento do próprio grupo como a linha narrativa do trabalho, o que acaba por construir uma ambiência bastante emocional para o disco. Não à toa, são as últimas palavras do trabalho “Pedi pra ter bons amigos / Foi fácil de achar / Celebre mesmo caindo / É sobre voar”, em “Deixa”.
Aqui, Boogarins nunca soou tanto como Boogarins, e afirmar isso também significa surpreender-se com algumas de suas escolhas. Talvez a principal delas, a de deixar um pouco mais de lado as experimentações mais tortas, nebulosas e psicodélicas para construir um álbum de canções de quatro companheiros que se divertem e se realizam por tocar juntos a uns bons anos.
Não há o abstratismo da porção final de Manual (2015), os borrões sonoros e digitais de Lá Vem a Morte (2017), nem a improvisação livre de Casa das Janelas Verdes (2017). Todas essas fases estéticas e composicionais culminam em canções de banda, com força de “ao vivo”, assinadas por todos, cantada por todos. Evidentemente, o psicodelismo e a lisergia ainda continuam firmes e guiam boa parte do corpo instrumental do trabalho, mas o fazem de forma muito mais objetiva, bem como sua estreia em 2013. Por isso, Bacuri parece ser uma celebração de toda a trajetória da banda, o encerramento de um momento ao trabalhar muitas lembranças para daí, recomeçar.
QUEM GRITA VIVE CONTIGO
“Eu reinei na poeira do Sol / Bacuri” são os versos que abrem o disco, com a faixa título “Bacuri”, mantra escrito pelo baterista Ynaiã Benthroldo e cantado por ele. Ela já estabelece um cenário solar, que poderia ser aproximado ao apresentado em Manual (2015) e Sombrou Dúvida (2019), mas que possui um novo aspecto, seja pela voz de Ynaiã, pela bateria simples, ou guitarras contínuas e texturas que permeiam o digital e o acústico.
Segundo o material de imprensa enviado pela banda, a palavra que intitula o disco nomeia uma fruta amazônica e do cerrado, mas também é sinônimo de “criança”: “É engraçado que sempre nos chamaram de ‘meninos’ e agora os ‘meninos’ são outros, os nossos filhos”, comenta Benke.
Depois de tantas obras, entre performances mais experimentais e outras mais contidas, a banda nunca soou tão firme e nem tão fiel às suas referências quanto em Bacuri. “Corpo Asa” é grande exemplo disso. Na medida em que apresenta um romantismo a partir dos versos de Dinho – “Ficar com você / É fugir de casa/ É amar sem dono” –, mantém uma melancolia solar na guitarra compassada característica do artista, no veio de Manual. Mas o faz aproximando-se ainda mais das canções do Clube da Esquina.
Além de fazerem nos últimos meses turnês apresentando suas versões do grupo de compositores e seus discos históricos, a banda sempre posicionou o movimento mineiro como uma das suas maiores referências. Em Bacuri, há diversas canções que parecem ser síntese disso como a já citada “Corpo Asa”, “Chuva dos Olhos”, “Deixa”, além da referência mais direta em “Amor de Indie”.
Isso demonstra uma banda em celebração da sua própria história e de seu próprio olhar para a criação, postura que deu ao disco um otimismo não antes visto na discografia dos goianos, como é ilustrado nos versos: “Vai chegar, / sorriso vem sem avisar”, em “Chuva dos Olhos” e “Soprar, amar, cantar sem medo / Um artifício meu / Melhor que sufocar”, cantado por Benke em “Chrystian & Ralf (Só Deus Sabe)”.
Essa última, inclusive, homenageia a dupla sertaneja goiana pelo título, além de possuir um trabalho de violões bem crus no arranjo, apontando a um sertanejo de aparência campestre, como também mostrado em “Dislexia ou Transe” no disco de 2019.
A brincadeira de costura de ideias, típica do grupo, está presente no disco, seja pela referenciação de trabalhos de outros artistas, seja através da recorrência de ideias musicais e palavras como “Sol” e “Poeira”, que acabam povoando o álbum com imagens e sensações específicas desse universo construído pela banda.
Neste sentido, talvez a faixa que mais represente o tema de Bacuri seja “Amor de Indie”. A canção parece derivar de experimentações feitar a partir de “Amor de Índio” de Beto Guedes, já que, além do trocadilho com o título, possui estrutura melódica e harmônica próximas. Além de fazerem uma espécie de homenagem ao trabalho do mineiro, ela também parece culminar na celebração da própria banda e de sua própria história.
Sua seção instrumental se apresenta como trecho mais lisérgico do disco, acompanhado de uma espécie de nostalgia, memória – “Sorte, cê vai deixar de onda e vai me lembrar de ontem”. Ela ilustra muito bem como o grupo se apropria de expressões da música brasileira e as transforma através do que a banda tem de melhor: a sinergia entre seus membros.
Seu solo de guitarra pavimenta a melodia do coro apresentado como vinheta de introdução em Bacuri, e trabalhada de maneira mais contundente em “Crescer”. Essa última também se utiliza das baterias da seção lisérgica de “Amor de Indie” de maneira muito mais experimental, e sintetiza muito bem a estética do improviso e texturas lo-fi típicas de alguns trabalhos da banda.
ALGUMA COR, ALGO QUE EU POSSA ENXERGAR
Está tudo no lugar. Os acordes com sétima maior, os versos oníricos, as guitarras brilhosas, as linhas de baixo saborosíssimas, algumas baterias tortas, mas sempre precisas. A irmandade entre cada um, as suas vozes e canções, entretanto, nunca estiveram tão presentes.
Bacuri, desse modo, tem algo de ser criança, deixar tudo vívido, brincar com o que se tem e se apoiar em quem está do seu lado. O tempo é só mais um detalhe, porque tudo culmina no presente – “Eu juro deu pra ver / Verde de novo // Sei que o tempo de seca não erra / Mas eu quis florescer / Eu quis pagar pra ver / Quis contar sonhos”.
É, portanto, um disco carregado de emoção e memória, porque diz respeito aos processos de cada membro da banda. Seja por seu próprio crescimento, o de seus filhos ou por casamento, o amadurecimento é apresentado através da leveza com que o grupo encara sua trajetória e se futuro, porque, no fim das contas, não é a carreira internacional, o selo gringo, a expectativa da mídia: é sobre fazer música. A amizade e companheirismo desses meninos é o que os leva longe, e o que nos faz querer chegar sempre mais perto para celebrar, compartir e crescer junto.