Não é todo dia que se tem a oportunidade de vivenciar um show com tamanho sentido e abrangência, como o espetáculo realizado por Lan Lanh no Batuka Jazz Festival.
Por Mariana Kaoos*
Embora as palavras, como fenômeno de linguagem, tenham surgido com o objetivo de promover entendimento e facilitar a comunicação entre as pessoas, existem alguns lugares que elas simplesmente não alcançam – ou, quando sim, vêm acompanhadas da interseção, no limiar entre o que se apresenta como fala e entre o que se impõe enquanto silêncio.
De forma complexa e paradoxal, um desses lugares em que a palavra encontra limite é o campo da experiência. Veja bem, não estou indo pelo caminho do saber científico, que se propõe a teorizar conceitos de forma epistemológica. O que estou tentando fazer aqui, de fato, é expressar o quanto a palavra se torna miúda diante de acontecimentos – daqueles que vem e nos tomam e movimentam e produzem desejo. (Afinal, quem nunca viu aquele meme na internet do “não sei o que dizer, só sentir”?)
Acontecimentos que nos atravessam e que, quando nos oferecem fôlego existencial, como diria aquela velha canção de Gilberto Gil, “nem pensar a gente quer, a gente quer é viver”. Acontecimentos também densos, agora citando Cazuza, que nos propiciam a querer “pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou”…
Entre as infinitas possibilidades, surgem os acontecimentos que geram experiências e que, uma vez estando lá, nesse espaço permeado pelo risco e pelo mirabolante, fazem com que a gente queira abocanhar o surpreendente, a maravilha, o realismo fantástico das trocas, dos encontros, da vida. Aí é quando nos faltam palavras. O corpo sente, o coração dispara, os olhos deixam de piscar para poder ver tudo, não perder nada daquele instante mágico. Na experiência, apreendemos o mundo através do corpo e do sentido.
No entanto, se assim o é, por que tantas pessoas se aventuram a processar a experiência e transformá-la em palavras? Qual a justificativa de deslocar um acontecimento individual do nosso íntimo, produzindo uma narrativa sobre o mesmo, e soltar mundo afora, internet adentro? Quando compartilho uma vivência que é minha, ela deixa de me pertencer e se torna coletiva, em um espaço onde cada um faz dela o que bem quer? E vale mesmo a pena encarar o desafio de colocar palavras no meio das experiências, uma vez que essas palavras não terão o poder de alcançar a potência do que foi vivido?
Não tenho resposta para nenhuma dessas indagações e, se as escrevo aqui, é com o propósito de pensarmos juntos, para tecermos alguns entendimentos sobre essa encruzilhada. Contudo, embora sem querer bradar verdades, mesmo cheia de dúvidas, sou uma defensora nata da fala. Falar para criar, falar para trocar, falar para crescer. Celebrar a experiência experienciada na sua mais intensa redundância, a fim de que mais gente saiba e, com tanta gente sabendo, ela possa voltar a acontecer, quem sabe, para todo mundo.
Sendo assim, mesmo tendo finalizado a minha noite deste último sábado, 14, sem palavras, me lanço na empreitada de tentar traduzir o que foi a experiência de ter assistido ao espetáculo de Lan Lanh, no Festival Batuka Jazz. Não sei se irei obter êxito, mas, diante da beleza do que foi visto e vivido, tenho a certeza de que é necessário falar sobre e anunciar as boas novas. Que comecemos então!
“Ver o que todo mundo viu e pensar o que ninguém pensou”
Albert Szent-Gyorgy
Vejamos a imagem acima. Se, em um primeiro momento, ela transmite a ideia de esvaziamento e solidão, aqui e agora, a fotografia descreve o término da noite deste último sábado, 14 de setembro. Os atabaques em questão, pertencem à percussionista Lan Lanh, última atração a se apresentar no segundo dia do Batuka Jazz Festival.
Em sua primeira edição, o evento trouxe 12 shows gratuitos, sendo 9 espetáculos realizados no Centro Histórico de Salvador – Pelourinho, e outros 3 no Parque Ecológico de Lauro de Freitas. O evento explorou desde as origens do jazz até as suas fusões contemporâneas, e destacou a importância das raízes africanas e como elas moldaram o gênero musical.
Embora a divulgação tenha sido efetiva, pouco me atentei ao quão bacana o Festival poderia ser. À convite de algumas amigas, combinamos de prestigiar o evento somente no sábado. Neste dia, o Batuka Jazz iniciou sua programação às 15 horas, com apresentação de VJ Gabiru, seguido por Alissa Sanders e as Divas do Jazz e, na sequência, o grupo Panteras Negras.
Chegamos somente às 20 horas, quando iniciou-se o show de Monna £ Banda, com participação de Gerônimo Santana. Apesar deste artigo opinativo não ser sobre o Festival como um todo, quero deixar registrado que a apresentação de Monna foi de um requinte extremo. Presença de palco, qualidade sonora, rítmica e escolha ímpar do repertório – que mesclou canções autorais e clássicos de divas brasileiras como Gal Costa e Rita Lee. Monna encantou o público e este, por sua vez, dançou, aplaudiu e não se deixou esmorecer por conta da chuva.
Com o término da apresentação da cantora paulistana, foi a vez de Lan Lanh entrar em cena. Vestida de branco, com detalhes dourados no rosto e nas pernas, a percussionista caminhou em silêncio e se posicionou exatamente no meio do palco, rodeada pelos seus instrumentos percussivos, dentre eles o cajon, o timbau, os tambores, pandeiros e caxixis. Naquele momento, do encontro da sua mão com o atabaque, ouviu-se um primeiro som: forte, potente, incisivo, certeiro. Esse som preencheu o ar, o chão da Praça Quincas Berro D’água e os ouvidos atentos do público que não tirava os olhos do palco.
Do primeiro toque, veio o segundo e depois o terceiro e o quarto e assim por diante. Acompanhada dos músicos João Felippe e Guto Menezes, Lan Lanh deu início a uma releitura de Canto de Xangô, música que compõe o disco Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Olhos fechados, expressão de entrega total. A percussionista entrou em uma espécie de transe simbiótico com o som. Já não se sabia mais diferenciar o que era Lan Lanh e o que era instrumento. Na verdade, a experiência que se iniciava ali era a de um deslocamento, transmutação. Lan Lanh e o atabaque haviam se tornado um só corpo, ecoando cadência, compasso, linguagem.
Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje – Provérbio Africano
Quando o papo é sobre arte, muitas pessoas acreditam em dom, outras tantas em esforço, estudo e prática. Nos meus entendimentos, parto da ideia de que criar arte acontece através do se lançar à experimentação e da produção de intimidade com a coisa em si.
A primeira vez que vi/ouvi um pouco do trabalho de Lan Lanh, foi através do VHS do Acústico MTV, de Cássia Eller. Durante todo o ano de 2002, rebobinei aquela fita até ela embolar. Achava genial a composição do disco, a voz rasgada de Cássia e a performance dos músicos envolvidos.
Passei a consumir não somente a obra da cantora, mas a acompanhar o translado cultural dos artistas da banda. Em 2003, Lan Lanh lançou seu primeiro disco solo, o Lan Lanh e os Elaines – Com Ela, que contava com a participação de Jussara Silveira e Márcio Mello, dois também expoentes da música baiana.
Se não me engano, foi ainda no referido ano que vi uma apresentação sua bem enérgica, no Parque da Cidade, aqui em Salvador. Ela dividia o palco com Tamima Brasil, Fernando Nunes e Walter Villaça, músicos que também acompanhavam Cássia. Já era possível observar no disco “Com Ela” um caminho próprio, com sua identidade impressa na sonoridade. Havia rock, pop, batucada e também uma certa influência latinoamericana, como ouvida na faixa “Delaveraveraboom”.
Naquela época, observava Lan Lanh como uma artista curiosa, rodeada por pluralidade rítmica, apresentando novas batidas percussivas, ocupando espaços, indo ao encontro de um incessante aprimoramento dos toques. Eu tinha apenas 13 anos e não entendia quase nada do mundo e das coisas, mas via na sua trajetória uma imensa paixão pela arte do fazer música.
Após esse período, ela ingressou em um projeto chamado “Tresloucados”. Era um encontro muito bacana entre Lan Lanh, Davi Moraes e Preta Gil. Dentre suas apresentações, houve uma no Porto da Barra, ao pôr do sol, que colocou a praia inteira para dançar. Eu estive presente e posso dizer: Beleza pura!
Dalí em diante, fui notando Lan Lanh aqui e acolá. Ela esteve por um tempo no projeto Moinho da Bahia, com Emanuelle Araújo. Depois foi tocando com outros artistas (trazendo para a atualidade, nesses últimos anos, acompanhando Maria Bethânia) e se presentificando em espaços de fundamental importância para o Brasil e para a Bahia.
Quando as comemorações do 2 de fevereiro, no Rio Vermelho, ainda não eram engolidas desse jeito sem vergonha pelos interesses do capital, na Festa de Iemanjá cabia tudo, inclusive um palco de rock que ficava na Travessa Bartolomeu de Gusmão, uma rua perto da Praia da Paciência. Ao final da tarde do dia 02, Marcio Mello subia ao palco com um monte de músicos bacanas e tocava sua guitarra como ninguém. Lan Lanh, sempre que podia, também pintava por lá, não apenas como artista, mas também apoiadora da cena.
Esses são pequenos trechos que pude acompanhar da trajetória de Lan Lanh e que sei que compuseram a sua formação enquanto artista. Muitos outros devem ter sido proponentes diretos do seu amadurecimento sonoro e que desaguaram na belíssima apresentação do seu show no Batuka Jazz Festival. Não há como se pensar (ou, aqui, analisar ) uma produção de si mesmo, no caso, dela, sem compreender todos os passos que a trouxeram para ser a percussionista que é hoje. Ou, como diria o provérbio afriano, “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”…
“Atabaque chora, chora também o amor em mim” – Atabaque Chora, Os Tincoãs
Após a releitura do Canto de Xangô, Lan Lanh deu boa noite aos presentes, se mostrou comovida e radiante pelo convite de sua apresentação no Batuka Jazz Festival e reafirmou a representatividade do evento, pelo fato dele estar acontecendo ali, no Centro Histórico de Salvador, de forma gratuita para quem quisesse chegar.
Em meio a calorosos aplausos, o show seguiu com repertório vasto, rico e cheio de atravessamentos. Canções já consagradas no cenário popular, como Xodó, de Luiz Gonzaga, dividiram a cena com algumas produções novas – e muito boas -, a exemplo de Lucro, do Baiana System e de Mulheres no Poder, da banda Psirico.
João Felippe dominou a guitarra baiana com maestria. Dela, saíram boníssimas notas que compuseram as melodias do Hino do Senhor do Bonfim, Lamento Sertanejo, Desafio e que também homenagearam artistas consagrados na história da música popular brasileira, dentre eles, Jacó do Bandolim e Osmar Macedo.
Assim como Roberto Barreto, integrante do grupo Baiana System, João Felippe transportou sua impressão identitária ao manusear a guitarra baiana. Embora seus acordes estivessem trazendo antigas canções, a sensação foi de estar ouvindo tudo aquilo pela primeira vez, mostrando um novo tom e apontando para um possível e profícuo novo caminho da inserção da guitarra baiana na música contemporânea brasileira.
Música contemporânea brasileira essa que, durante toda a apresentação, Lan Lanh fez questão de mostrar o seu real tamanho e capacidade. Um dos pontos altos do espetáculo foi a confluência de gêneros musicais, sem o ajuizamento valorativo do que é bom e ruim.
É possível mesclar o pagodão baiano com o forró, com a bossa nova e com o jazz instrumental? É sim, senhora! Quem estabelece julgamento em torno de gêneros musicais é a ideologia dominante, atrelando alguns ritmos sonoros a sinônimos como pobre, ruim e popular. Ora, nada mais cafona do que um nariz empinado, achando que só quem faz cultura é o branco de elite, não é mesmo?
Elucubrações à parte e retornando às provocações que o espetáculo proporcionou ao público, gostaria de destacar ainda mais três momentos de suma importância. O primeiro deles foi a vinda de Tamima Brasil ao palco, dando conta dos compassos percussivos, juntamente com Lan Lanh, em alguns momentos do show. Lan Lanh e Tamima possuem uma cumplicidade de décadas. Quem acompanha a trajetória de ambas, sabe a representatividade que é vê-las, juntas, em conluio, sorrindo e tocando lado a lado.
O segundo momento, e tão importante quanto, foi a participação exuberante do musicista Mário Soares, com o seu violino afrodiaspórico. Até então, eu não conhecia o trabalho de Mário e, após sua passagem pelo palco, entrei em catarse e me perguntei o porquê de nunca tê-lo ouvido. Baiano, compositor e violinista, ele promoveu um verdadeiro espetáculo, em inteira consonância com Lan Lanh. Vale ressaltar que, de acordo com João Felippe, os integrantes da banda e o violinista se conheceram naquela mesma manhã, quando foram passar o som. Isso é impressionante porque, em palco, todos estavam em perfeita harmonia e formaram um grupo de muito encaixe. Mário e Lan Lanh apresentaram ao público o que há de mais potente na arte: a simplicidade e complexidade do que é belo. O violinista é mesmo estonteante e vale deixar aqui um vídeo de uma de suas exuberantes composições, a música “Alujá em Andaluzia”.
Por fim, o ápice do show, foi o solo de Lan Lanh no berimbau. Esse instrumento de origem angolana, e largamente utilizado na luta da capoeira e nas rodas de samba da Bahia, ocupou um lugar soberano em boa parte da noite.
O que os meus olhos viram, as minhas palavras não descrevem! Lan Lanh não tocava o berimbau, ela o manuseava com extrema intimidade, como se tocasse ao seu próprio corpo. Vara, arame, cabaça, pedra, fio. Cada centímetro do instrumento foi explorado pela percussionista com delicadeza e profundidade. Tudo emitia som, ruído, encanto. Nesse momento, ao olhar para trás, vi um público estarrecido, boquiaberto com a troca de Lan Lanh com o berimbau e do berimbau com Lan Lanh.
Entre a palavra e o silêncio: o eco da experiência e o ressoar de um amanhã
Como disse no início do artigo, embora as palavras cumpram um papel de suma importância no desenvolvimento da comunicação humana e no entendimento ontológico da existência, elas possuem entraves, limites que as impedem de alcançar determinadas zonas, como a do campo das experiências.
Não é todo dia que se tem a oportunidade de vivenciar algo com tamanho sentido e abrangência, como o espetáculo realizado por Lan Lanh no Batuka Jazz Festival. Assim como também não é todo dia que a coragem manda um alô e dá a munição necessária para que se desenrole o ato da descrição da experiência.
Contudo, quando isso ocorre, é preciso que se faça. Exercer a ação da escrita, ainda que com a consciência de que ela jamais alcançará o que foi visto e sentido, é uma forma de acessibilizar o acontecimento.
A boa nova é que tem muita coisa surgindo e que as pessoas podem – e devem! – se introduzir no meio dessas coisas. Um festival como o Batuka Jazz precisa ganhar notoriedade pela sua consistência e proposta, assim como um show do porte do de Lan Lanh, precisa gerar bafafá, burburinho, sair do palco e adentrar na boca do povo.
O objetivo, além de enaltecer os nossos artistas baianos, é também incitar a produção de desejo e, com ele, a produção de espaço. Somente dessa forma, ela, e tantos outros multi artistas poderão ter palco, ter cachê valorizado e oferecer apresentações belíssimas – recheadas de significantes e significados – a um público carente e ávido por cultura e por arte. Portanto, ecoem essas palavras. A experiência em si não pode ser transcrita, mas a oportunidade de vivenciá-la novamente, sim!
* Mariana Kaoos é jornalista, mestra em Cultura e Sociedade e escritora do devir.