Por Mariana Kaoos*
Neste mês de setembro, o disco Da Lama ao Caos, da banda Nação Zumbi, completa 30 anos de existência. Uma obra completa, complexa, política, com uma diversidade rítmica e sonora extremamente profunda. Suas canções são atemporais, promovendo um debate em torno de ideologias, luta de classes, miséria, pobreza, enfim, promovendo questionamentos em torno das relações intersociais e subjetivas entre os sujeitos e os espaços. Considerado um dos maiores discos já produzidos a nível mundial, “Da Lama ao Caos” parece ter sua voz intacta, sem nenhuma corrosão.
Em turnê com show homônimo ao álbum, a banda Nação Zumbi chega à Salvador neste próximo domingo, 15 de setembro, para uma apresentação única na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Batemos um papo com o vocalista, Jorge Du Peixe, sobre a potência do disco, como ele é símbolo de resistência sonora cultural hoje em dia e porque se faz tão atual, como se estivesse sempre falando do agora e do porvir. Arte, entretenimento, distração: “Da Lama ao Caos” transita entre todas essas esferas? Confira a seguir:
el Cabong: Em todo o país, há um total de 14 mil km² de extensão de manguezais. Sabemos que esse é um ecossistema de riqueza, vida, fertilidade e subsistência de muitas famílias brasileiras. De forma simultânea, quando a lama e o mangue surgem, entoados em poesia, prosa e canto, ele também vem como um sinônimo de miséria. É a lama que tudo come: o mocambo que tem molambo e que a cidade grande não vê. A lama do capital devora tudo. Em 1994, a Nação Zumbi traçou um diálogo entre lama e caos. Trinta anos depois, vimos ocorrer diversos desastres ambientais, também em nome do capital, como em Brumadinho, Mariana e até mesmo nas enchentes do Rio Grande do Sul. O que era essa lama cantada pela Nação Zumbi em 1994 e como você vê essa lama neoliberal espalhada em todo o Brasil nos dias de hoje?
Jorge Du Peixe: Há 30 anos atrás, em 1994, quando fizemos o “Da Lama Ao Caos”, já existia a problemática em avanço e estamos vendo esse avanço corroer o planeta e pouco se faz. E 30 anos depois, muita coisa não mudou, várias tentativas e é o que você diz, a lama neoliberal propicia isso, gestões, governos e autoridades de olhos fechados e torcem o nariz quando se fala realmente, quando se traz à tona esse problema que a gente vive. A crise ambiental já está num pico muito alto. Especialistas falam em reverter isso, deve ter passado um tempo. E 30 anos depois ver esses manguezais sendo aterrados, essas queimadas todas, a gente vê o problema de todo um agro intocável, propagandas de que o agro é isso, o agro é aquilo, mas se vê a cada dia como está sendo para o planeta essa bancada do agro intocável. Espera-se que o governo federal se manifeste de alguma maneira, pois está estranho. Não se pode ficar nessa expectativa sem que seja tomada alguma providência, que já deveria ter sido tomada há um bom tempo. Muita coisa não mudou 30 anos depois, e isso é dito no palco também quando a gente sobe a cada show. Em 94, quando a gente fez o disco, segundo uma pesquisa pelo DIEESE, Recife era a quarta cidade pior para se viver. E isso numa cidade estuário, uma cidade cercada por mangues. Imagina as outras partes do país, onde o avanço das queimadas e o descaso vigente dia após dia. Essa pergunta tem uma resposta difícil, pois não tem uma resposta para solução diante de tudo isso. Recursos existem, mas de alguma maneira mexe nos cofres e na economia, então tudo isso acaba sendo uma incógnita. Não deveria, mas estamos no meio de um caos. Acho que estamos no pico desse caos.
E.C: As músicas da Nação Zumbi e, mais especificamente, as músicas que compõem o disco da “Lama ao Caos” são permeadas de uma profunda visão política. É possível perceber alusões ao êxodo rural, a uma sociedade totalitária, composta por “cavaleiros” que circulam “vigiando as pessoas”, ao movimento desenfreado de crescimento (e desigualdades) das metrópoles e, principalmente, à luta de classes. Canções como “A Cidade”, por exemplo, estiveram no cerne de movimentos sociais como o #OcupeEstelita, em 2014, que combatia a especulação imobiliária. Qual a importância de entender a música para além do entretenimento e colocá-la também como um agente de denúncias sociais e implicações políticas? A quem as composições e melodias da Nação Zumbi servem?
Du Peixe: Antes de qualquer coisa, a música, a cultura vem para entreter, entretenimento, claro, mas em meio a tudo isso, como você coloca na pergunta, as letras a que servem? São problemáticas que a gente via, de onde a gente veio, do Nordeste. Quando se fala do êxodo, dos cavaleiros circulando e vigiando as pessoas. Isso são coisas que ainda perduram. Mais uma vez muita coisa não mudou. Esse lado social e político que grita no “Da Lama Ao Caos”. Tudo que a gente viveu na época e vivencia ainda hoje, e é importante que se traga isso, numa linguagem fácil e direta, por meio da música, através das melodias. Talvez algumas coisas sejam avisadas e alertadas. Eu acho que tem esse papel sim, muitos artistas preocupados com essas coisas e acabam imprimindo isso na sua música.
E.C.: Falando um pouco de sonoridade, “Da Lama ao Caos”, talvez, seja um dos discos mais ricos em diversidade rítmica na história da música brasileira. Nele, encontramos ciranda, samba, funk, rock, maracatu, embolada e por aí se segue. O que isso fala sobre a pluralidade sonora do Brasil? Como foi pensar e produzir, naquela época de 1994, uma revolução musical em termos de confluência de batidas e sons e no que isso se assemelha ou se distancia da atual produção sampleada que vemos nas bandas e artistas contemporâneos?
Du Peixe: Muito se falava de que o que a gente tinha feito em “Da Lama Ao Caos” já havia sido feito por artistas, um ou outro. A gente sabe que de tempos em tempos as coisas se repetem. Mas depende muito da perspectiva sonora de cada um, de referências do que você vinha ouvindo. A gente era muito ligado em tudo da diáspora africana, nas batidas, no maracatu. A gente cresceu ouvindo maracatu, frevo, ciranda, coco.. Então, estava tudo impregnado no corpo, na alma e nos ouvidos. Eu e Chico, a gente era Bboy, a gente dançou break, legião hip hop no final dos anos 80. A gente discotecou no começo de tudo isso, esse contato com música na mão, os vinis, a busca, o garimpo, minha pesquisa até hoje é Brasil 70. Mas a gente ouviu de tudo, da gênese da música eletrônica, Kraftwerk, Clock DVA, Suicide e África Bambaataa & Soulsonic Force. Tudo que vem dessa música sonic de um certo afrofuturismo que está impregnado também no “Da Lama Ao Caos”. O Chico andava pra cima e pra baixo com o livro “A Teoria do Caos”, de James Gleick, e outras coisas, mas aliado à problemática da fome, “A Geografia da Fome”, de Josué de Castro. Os folguedos que estavam à nossa volta, então tudo isso de gritar o Brasil e pelo Brasil. A gente vinha sampleando. A gente sampleava música do Brasil. Hip Hop brasileiro veio samplear Brasil uma época depois. Tem muito de Hip Hop, de soul, makossa, maracatu… nunca fomos uma banda de maracatu, usamos os três tambores, basicamente como se fosse um sampler orgânico. A gente sempre em tom de respeito e saudando as nações de maracatu, o baque solto e o baque virado, mas a gente tem uma outra intenção em cima de tudo isso. E foi natural, recursos que a gente tinha, recursos naturais, recursos sonoros, que possibilitaram esses temas e tudo que está disposto em Da Lama Ao Caos, e somado a boa produção de Liminha, num estúdio de grande porte, que era o Nas Nuvens. Os meninos de Olinda adentrando um estúdio de grande porte e com um grande produtor e acho que no momento certo. A gente em parte sabia o que queria fazer, mas a gente não sabia como seria recebido e o alcance de tudo isso. Citando a frase de Fred Zero Quatro: “Não espere nada do centro se a periferia está morta, pois o que era velho no Norte se torna novo no Sul”, algo que soava muito comum aos nossos ouvidos e acabou atravessando fronteiras e além-mar, não ficou só no Brasil. É um disco que é bem ouvido não só aqui, mas fora também. E trinta anos depois a gente ouvindo pra subir no palco e celebrar essas três décadas, a gente percebe de novo uma outra maneira de ouvir para os ensaios e levar para o palco. Nem todas as músicas até então tinham ido para o palco. A gente percebe que o disco é um tanto à frente do seu tempo. “Da Lama Ao Caos” é um disco importante e vai ser ainda por um bom tempo. E a cada audição você descobre coisas novas, nuances.. É um disco que a gente tem muito orgulho dele.
“Da Lama Ao Caos” é um disco importante e vai ser ainda por um bom tempo. E a cada audição você descobre coisas novas, nuances.
E.C.: O movimento Manguebeat, que foi o maior em termos de contracultura na década de 90, se perpetua até hoje com a incorporação de outros segmentos artísticos como a poesia, literatura e, até mesmo, a experimentação cinematográfica. Agora, em 2024, como poderíamos explicar o que é o Manguebeat e quais os próximos passos para o futuro do movimento?
Du Peixe: A partir dos anos 90, a ideia de transformar o seu lugar, como está disposto ali no Manifesto, desobstruir as veias de uma cidade infartada. Recife era isso, voltando a ideia da quarta pior cidade do mundo pra se viver. Que a ideia era movimentar o seu lugar, com os elementos que a gente tinha. Isso tudo começou com as discotecagens no centro de Recife, com toda essa garimpada que a gente tinha e que a gente mantém até hoje. Segurar isso por todo esse tempo e tentar fazer com que soe da mesma maneira do início é um pouco difícil, pode-se dizer. Mas do início não foi uma transformação de agora, a partir desse grito dos anos 90, quando as duas bandas seminais, Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi, de formações distintas e derrubar monólitos e criar uma situação onde pudesse divertir e fazer os melhores do seu lugar. Mudar o lugar ou deixar o lugar? É essa a pergunta que se faz de tempo em tempo. A gente preferiu mudar o lugar e nesse esquema de quase cooperativa, não exatamente um movimento, um manifesto que atrelado, encartado em “Da Lama Ao Caos”, foi o release de uma festa, que tem os moldes de um manifesto. E na verdade, o manguebeat foi uma coisa cunhada pela imprensa, era o mangue, pela diversidade, da diversidade cultural e a diversidade do mangue, onde tudo se transforma. Nos intervalos das marés tudo se altera, tudo se transforma. O estuário essencial para o planeta, essencial para o bem viver. E na época, claro, muito do cinema, das artes plásticas, da literatura, tudo isso que causa toda a influência que de tempo em tempo, a cada disco, a gente vem colocando o que nos influencia. Literatura, cinema, quadrinhos, ficção científica, afrofuturismo, alguns acessórios para facilitar a abertura das portas da percepção. Tudo isso continua presente nas intenções. A cada disco a gente traz uma intenção, a cada disco a gente se renova, então através dos discos que a gente se mantém e se perdura. A ideia é se manter por aqui por um bom tempo ainda, esse lamaçal ainda vai sujar muita gente.
E.C.: Jorge, como última pergunta, mas não menos importante… 30 anos após o lançamento de “Da Lama ao Caos”, a Nação Zumbi continua concordando que uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor?
Du Peixe: E uma depois também.
* Mariana Kaoos é jornalista, mestra em Cultura e Sociedade e escritora do devir.