Breves relances de uma identidade Bagum

No dia seis de setembro, pela primeira vez em 2024, a banda Bagum se apresentou em sua cidade de origem, Salvador, no Teatro Sesc Pelourinho. Em processo de construção do primeiro álbum completo, a banda optou por fazer um apanhado de suas composições, entremeando novas ideias e relances do que será o próximo trabalho do grupo. Com plateia repleta de amigos, a noite foi uma celebração da obra e continuidade do projeto com já oito anos de existência.

Por Pedro Antunes de Paula

Três horas após o show, estava num bar com Pedro Oliveira – o responsável pelos sintetizadores da banda – onde conversávamos sobre a necessidade de nomear, rotular e posicionar o trabalho de bandas em grupos esteticamente bem definidos por parte dos jornalistas, veículos e de quem mais produza informação sobre música. Para além da atividade prática e necessidade comum da produção de sentido através da tipificação do que é nomeado, nos saltou aos olhos as distorções que essa atividade muitas vezes causa para com a complexidade do que se tenta nomear. Este é, para mim, o caso da Bagum, e sua comum nomeação como “banda de jazz instrumental”.

Compreendo que o termo “jazz” se comporta – ou pelo menos é utilizado – como um guarda-chuva conceitual para muitos trabalhos em que o instrumental possua certo protagonismo estético e é mais cuidadosamente racionalizado, seja em estrutura composicional ou simplesmente virtuosismo dos músicos. No entanto, a classificação dos gêneros é sempre tortuosa, porque esbarra nas complexidades individuais de cada obra, e ganha realmente força através da soma das semelhanças gerais.

Neste sentido, Pedro Oliveira, em entrevista para Monkeybuzz no ano de 2022, já definia a Bagum como uma banda que “foge de algo clássico do instrumental, principalmente do lance do jazz de impressionar pela técnica, buscamos outros caminhos, principalmente na textura, na sensação. A música instrumental consegue “falar” sobre coisas que a gente não consegue por em palavras. Meu interesse é nessas sensações difíceis de descrever com palavras dentro da música”.

Bagum por Natália Matos

Por mais que o “jazz” carregue certo prestígio conceitual e certa liberdade estética, me parece reducionista nomear a Bagum dessa maneira. Não que a banda não se insira em um cenário de bandas instrumentais de verve pouco mais experimental e de relação com rock alternativo e jazz contemporâneo – como as gringas BADBADNOTGOOD e The Comet is Coming – mas há certa diversidade, condensação, clareza e asseio na banda brasileira que a distingue, não só dos excessos composicionais e virtuosísticos, como das abstrações e das composições mais abertas das gringas.

Ao contrário das melodias vagas e construções harmônicas mais tortuosas, a Bagum propõe estruturas sólidas, de melodias mais definidas, ritmos incisivos e composições mais contidas. Essa clareza e limpeza composicional, somada à uma compactação em propostas mais objetivas, dá à banda um caráter mais acessível e cognoscível, característica não tão usual aos projetos do jazz contemporâneo, por exemplo. São obras coesas, que funcionam como breves relances estéticos de fácil apreensão. Não abandonam o brilhantismo dos músicos, mas prezam mais por uma experiência coerente do que um esbanjo técnico.

Com o show “Construção”, a Bagum consegue demonstrar porque, após oito anos de carreira e, mesmo antes de lançar seu primeiro álbum completo, é uma das bandas mais interessantes do cenário alternativo da música brasileira: tem como ponto fundamental uma costura firme de suas referências, a ponto de cozinhar uma identidade sonora muito bem estabelecida, mesmo com sua diversidade estética usual.

As faixas apresentadas possuem uma base rítmica muito sólida, fruto dos estudos do baterista Gabriel Burgos, que em diálogo com as graves proposições melódicas de Pedro Tourinho ultrapassam a ideia de cama, papel muitas vezes realizado pelos dois instrumentos. No caso da Bagum, o baixo e bateria são protagonistas, no esteio da escola da música brasileira e de gêneros afrobrasileiros e afro-americanos. Dessa forma, permitem o brilho e viço das guitarras de Pedro Leonelli incrementarem como ornamentos o entorno dos pulsos das faixas, substância fundamental, inclusive, para o elemento litorâneo característico das composições da banda. Em soma, o grupo ainda encontra lugar para os sintetizadores de Pedro Oliveira, que ora proporcionam leveza, ora complexidade para o todo.

Essa junção permite ao grupo caminhar por entre diversos gêneros, característica apresentada com ampla expressão ao longo show. Foram momentos suaves, de baixo andamento e protagonismo dos sintetizadores e guitarras limpas; momentos de pulso forte, os quais a bateria e graves construíam grooves intermediados pelo funk e ritmos brasileiros; além dos relances cada vez mais pesados com as guitarras distorcidas e baterias firmes do veio rockeiro da banda. No meio dessa experimentação, a banda ainda apresenta momentos dançantes, por influência das construções eletrônicas que vem fazendo, em uma intersecção com o Dance, House e Hip-Hop.

Toda essa diversidade instrumental reflete uma das suas maiores qualidades do grupo: sua parceria e reserva. Cada integrante protagoniza um momento marcante do set, o que e permite ao público compreender os raciocínios de composição do grupo: uma troca justa de atenção para a qualidade individual de cada integrante.

Bagum por Natália Matos

A virtude da Bagum não está mais contida em seu próprio umbigo, já que vem, nos últimos anos, colaborando com artistas como Vandal e Lívia Nery, não apenas em participações especiais, mas como fundamento da performance ao vivo e composicional desses artistas. É por esta razão que é especial a oportunidade de uma apresentação particular do grupo, para apresentar, aos poucos, o resultado dessa trajetória.

Certamente, o show “Construção” é o melhor exemplo da potência banda, já que permite um vislumbre de cada porção criativa proposta pelo grupo e dá ao público um panorama do que os meninos entendem por Bagum: uma boa bagunça, que se alastra e amontoa o que há de melhor em casa, e ainda junta todo mundo pra ver.

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