Mais um festival se finda e uma série de shows entra na lista de melhores que o Brasil já viu. De início era difícil responder a pergunta que todo mundo fazia (e ainda faz): Qual foi o melhor show? Sustentei por umas 12 horas um empate não tão convicto entre Strokes e Wilco. Na verdade, acho que só dá para avaliar com um pequeno distanciamento do show, porque dá para ter uma noção melhor do impacto que ele teve sobre nós. E é exatamente impacto o que cometeu o norte-americanos do Wilco no primeiro e único show deles no Brasil. Para quem apostava apenas nas doces e belas baladas e um clima mais intimista, o erro foi uma feliz surpresa. A banda ligou a guitarra na tomada, em alguns momentos eram três ao mesmo tempo e fez um show primoroso.
Vários fatores podem definir um bom show. Boa execução técnica, vontade, interação, som de qualidade etc. Mas nada disso funciona sem pelo menos um punhado de boas canções (pelo menos no rock). No caso do Wilco, para quem conhece seus discos as canções tem qualidade garantida, um misto de folk, com alguma dose country, uma pegada rock e alguns outros recursos aqui e ali. No caso do show no Tim Festival, as canções estavam lá, facilmente reconhecíveis, belas, doces e cantadas quase todas por um público que atendia aos pedidos de Jeff Tweedy, líder e cantor da banda. Mas foi mais do que isso. O grupo tem um poder impressionante ao vivo, transformam as canções em rock de verdade, sem perder a ternura e a beleza.
Não é todo mundo que consegue unir de forma tão magistral a doçura melódica de belas composições e a pegada e energia rock. Resultado uma explosão no palco e em consequência na platéia. Não precisava se escabelar, berrar, pular, bastava acompanhar de queixo caído e no máximo cantar junto aquele desfile de alto nível que acontecia em um momento único no país.
A tomada rocker esteve ligada com vontade durante quase três horas, o bastante para a banda desfilar uma sequência de belas e bem tocadas canções com uma energia rock surpreendente. Um passeio que começou com “Poor Places”, e se seguiu com “Kingpin”, “Break your Heart”, “Muzzle of”, “Handshake Drugs”, “Shot in the Arm”, “At Least”, “Misunderstood”, “Hummingbird”, “War on War”, “Jesus etc.”, “Walken”, “I’m the Man”, “Spiders”, “Via Chicago”, “Late Greats”, “HMD”, “Monday”, “Outtasite” e “I’m a Wheel”. Não era dífícil se emocionar com o que entrava pelos olhos e ouvidos, nem raro ver lágrimas escorrendo nos rostos de pessoas ao lado. As belas melodias e letras ecoavam.
Seis músicos entregues aos caminhos do rock provocavam aquilo tudo de forma até simples, como deve ser. Eles sabiam bem o que estavam fazendo, com plena convição da celebração que estavam cometendo durante aquelas horas de show. Ave Rock. A banda veio completa, Jeff Tweedy na voz e guitarra estava feliz como se fosse sua estréia. Aos 37 anos, sabia como se fazer um show histórico, comandava tudo, do coro do público a sua magistral banda. Sem economizar adjetivos, tudo soava lindamente, bem tocado, com técnica e alma.
A cozinha fantástica, com baixo (John Stirratt, que também fazia backing vocal) e bateria (Glen Kotche) precisos dando o tom para uma exibição de gala. Tudo aliás era preciso, coeso e belo. Cada acorde, cada dissonância em prol da canção, em prol de produzir ao vivo um showzaço, daqueles de fazer o público mal piscar. A banda unia o que é necessário, eficiência nos instrumentos e uma tal de atitude, que muitos confundem por ai. Mas é aquilo ali, vontade de fazer o melhor show da vida, ou perto disso, tanto para a banda quanto para quem estivesse por perto.
Pianos e orgãos, daqueles antigões mesmo, ajudavam a dar um tom de décadas passadas, enquanto o outro teclado, comandado pelo multi-instrumentista Pat Sansone, o porra-louca da banda, criava ares mais modernos, produzindo efeitos. O passado e o presente do rock convivendo sabiamente, criando um dos roteiros para o que vem sendo o rock atual (aqui sim) desde o último anúncio de sua morte.
Sansone revezava teclados, efeitos, congas e guitarras. Ah! As guitarras. Perfeitas. Sublimes. Em vários momentos eram três delas conversando entre si, Tweedy, Sansone e Nels Cline. Esse um caso a parte, um quase cinquentão executando guitarras e steel guitars com maestria e uma vontade que muito jovem nem sonha. Os três se completando, com solos magistrais e sem exageros, terminando as músicas como se fosse sempre a última, criando um barulho belo e inesperado. Cabe reconceituar barulho, não era nada gratuito, inconsciente, era música, rock dos melhores, com cada nota soando perfeitamente e criando uma atmosfera sonora sublime. Cada música tocada com alma, não importando se as vezes ultrapassasse dez minutos. E quem se importava? Estavam todos entregues.
Uma apresentação memorável, que fez o tempo parecer que havia parado. Só o cansaço físico de alguns revelava que já iam duas horas de show. Mas Tweedy armou ainda a deixa, “Não vamos voltar a tocar por aqui tão logo, então vamos continuar tocando”?, e largou mais dois clássicos “Spiders”? e uma execução primorosa de “Heavy Metal Drummer”?. De chorar. A banda sai ao palco e atendendo a um público estupefato volta para um segundo biz. Eles decidem terminar a celebração de forma linda, homenageando um dos mestres que os influenciaram com uma cover de “I Shall be Released”, de Bob Dylan. Se encerrava ali uma daquelas noites que você volta para casa com a certeza de que não vai ter outra tão cedo e que não é toda hora que pode presenciar uma outra. Resta fechar os olhos e dizer amém.